(RE)CONSTRUÇÕES DE UMA CLÍNICA NÃO BINÁRIA: CONTRIBUIÇÕES DE PAUL BEATRIZ PRECIADO
(RE)CONSTRUCTIONS OF A NON-BINARY CLINIC: CONTRIBUTIONS BY PAUL BEATRIZ PRECIADO
Gian Batista Carmo 1*, Fabiana Cristina Teixeira2, Erica Arruda Peluzio3, Beatriz Santana Caçador4, e Sérgio Domingues5.
1 Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (Fadip), orcid 0000-0002-5125-5615
2 Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa), orcid 0000-0003-4012-3649
3 Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa), orcid 0000-0003-3948-9563
4 Universidade Federal de Viçosa (UFV), orcid 0000-0003-4463-3611
5 Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa), orcid 0000-0001-9254-6518
*Autor correspondente: e-mail:gianbatistaefg@gmail.com.
Resumo
Trata-se de um trabalho de conclusão de curso, de cunho teórico, que buscou investigar na produção literária do autor Paul Beatriz Preciado, novas nuances sobre gênero, que podem ser utilizadas na clínica psicanalítica, em atendimento à pessoas com perspectivas de gênero circunscritas para além da binariedade. O trabalho tem por objetivo buscar em duas obras de Preciado conceitos contemporâneos sobre o binarismo de gênero, analisar como eles estão sendo trabalhados na literatura científica e por fim, buscar alternativas de suas aplicações na clínica psicanalítica. Foram realizadas a análise das obras escritas pelo autor Paul Beatriz Preciado: “Eu sou o monstro que vos fala” (2019) e “Manifesto Contrasexual” (2004). No primeiro momento, buscou-se identificar os conceitos sobre gênero construídos pelo autor e analisá-los. No segundo momento, foi realizado uma revisão bibliográfica da literatura científica, nas bases de dados “Scielo”, “BVS-PSI” e “Google Acadêmico”. No terceiro e último momento foi realizado uma correlação dos conceitos do autor com a literatura encontrada e uma reflexão sobre como os conceitos podem ser utilizados na clínica psicoterápica e psicanalítica.
Palavras-chave: Psicologia; Psicanálise; Paul Preciado.
Abstract
This theoretical undergraduate thesis aims to explore the literary work of Paul B. Preciado to identify new perspectives on gender that may inform psychoanalytic clinical practice, particularly in the care of individuals whose gender experiences transcend the traditional binary framework. The main objective is to extract contemporary concepts related to gender binarism from two of Preciado’s works, examine how these concepts are addressed in the scientific literature, and propose possible applications within psychoanalytic settings. The analysis focused on two of the author’s texts: “I Am the Monster That Speaks to You” (2019) and “Countersexual Manifesto” (2004). In the first stage, key gender-related concepts developed by Preciado were identified and analyzed. The second stage consisted of a literature review conducted through the databases Scielo, BVS-PSI, and Google Scholar. Finally, the third stage involved correlating Preciado’s concepts with findings from the scientific literature and reflecting on their potential contributions to psychotherapeutic and psychoanalytic clinical approaches.
Keywords: Psychology; Psychoanalysis; Paul Preciado.
INTRODUÇÃO
A sexualidade humana, compreendendo esta como a forma que os seres desta espécie se relacionam uns com os outros e consigo mesmo, é tema de discussões, pesquisas e (des)construções teóricas desde os primórdios da história. O filósofo Michel Foucault se dedicou em pesquisar e escrever sobre estas relações, tendo como importante contribuição sua obra “História da Sexualidade”, construindo um estudo sobre sexualidade, sendo este conceito revisitado e re-elaborado no espaço-tempo de construção histórica da humanidade (Ciasca, Hercowitz e Lopes Junior, 2021; Foucault, 1977; Foucault, 1984; Foucault, 1985).
Atravessado e incomodado pelo discurso “naturalista” da sexualidade humana e questionando se as relações são fruto de algo “natural” da raça humana, Foucault demostra em sua obra que a forma pela qual as pessoas se relacionam, pouco tem de natural e é sim, uma construção social, que cria modos como as pessoas podem ou devem se relacionar. Desta forma, a sexualidade humana é composta e está imersa numa série de constructos que se interconectam, influenciando em como as pessoas vão se relacionar, sendo eles: o sexo biológico, a orientação sexual-afetiva, a identidades de gênero, o corpo, os papéis, a intimidade, a reprodução, o erotismo, o prazer, as fantasias, os pensamentos, as práticas, os relacionamentos, as relações de poder, a biologia, a religião, a política e a cultura (Ciasca, Hercowitz e Lopes Junior, 2021; Foucault, 1977; Foucault, 1984; Foucault, 1985).
Quando aprofundamos nesta temática e buscando entender como o corpo e sexualidade foram construídos historicamente, antes mesmo dos estudos de Foucault, percebemos que desde os gregos, a curiosidade sobre esta relação já era palco de teorias e de escritos. As primeiras teorias se preocupavam em compreender qual era a diferença entre os corpos e como elas se explicavam. A primeira explicação dada pelos gregos, eram que os corpos humanos eram isomorfos, ou seja, todos tinham a mesma forma e essência, e que a diferença sexual era dada pela diferença de temperatura no qual esses corpos eram expostos: corpos dos homens eram os que permaneciam no tempo e temperatura ideal, exteriorizando os órgãos genitais e sendo assim o corpo mais evoluído. Os corpos das mulheres sendo aqueles que não de desenvolviam na temperatura ideal e consequentemente os órgãos sexuais não se desenvolviam, sendo então corpos “involuidos”. Neste momento, temos a primeira divisão teórica (e política) do pensamento sobre os corpos e a imposição de significados e posições sociais sobre eles (Martins, 2019; Rohden, 2003).
Com o desenvolver da ciência e das práticas médicas, os corpos humanos começaram a ser estudados, e as diferenças anatômicas sendo evidenciadas, comprovando que na verdade os corpos eram anatomicamente diferentes, evidenciando o dimorfismo corporal dos humanos. A partir deste momento, a ciência se preocupou em diferenciar os corpos de homens e mulheres, criando então a classificação de corpos biológicos do tipo masculino e do tipo feminino, caracterizando o bimorfismo humano. Porém, atrelado as questões estruturais da sociedade e aos lugares sociais onde esses corpos femininos foram colocados, mesmo com critérios científicos, as mulheres ou os corpos femininos, sempre foram classificados como inferiores ao masculino, sendo justificados, por exemplo, pelo tamanho menor dos ossos do crânio, menstruação (que eram lidas como hemorragias constantes), estrutura muscular e papeis sociais correlacionados a gestação e seus cuidados infantis, impondo “papéis sociais” como algo que eram “naturais” de acordo com a sua biologia (Martins, 2019; Rohden, 2003).
Por serem vistas como “corpos mais frágeis”, histórico e socialmente foram colocados sobre elas, um conjunto de características, papéis, comportamentos e “modus de ser”, fundando o que chamamos de “binarismo de gênero”, onde se é criado socialmente uma expectativa naturalista de que certos corpos, atendam as expectativas dos papeis que a própria sociedade criou sobre eles, ou seja, que corpos do sexo biológico masculino se comportem com aquilo que é definido como masculinidade ou de homem; e corpos biológicos do sexo feminino, de feminilidade ou ser mulher (Ciasca, Hercowitz e Lopes Junior, 2021).
Várias problemáticas surgem a partir daí e obras como as de Foucault dão luz a isto, demonstrando que pouco tem de natural sobre o binarismo de gênero e mais sobre social e como nos construímos enquanto sociedade. Outros autores contemporâneos como Judith Bultler, por exemplo, questionam o que chamamos de masculinidades ou feminilidades? Quais são os limites entre estes dois constructos? O que é só do homem ou só da mulher? E se são só deles, porque isto parece não estar “natural” entre as várias sociedades? (Foucault 1977; Foucault, 1984; Foucault, 1985; Rodrigues, 2005).
Nesta perspectiva re-construtivista, o filósofo Paul Beatriz Preciado tem surgido como um autor contemporâneo, seguindo a linha de “Teorias Queer”, publicando trabalhos com uma crítica ao binarismo de gênero e propondo novos conceitos sobre a forma como pensamos gênero e consequentemente a sexualidade humana.
Neste contexto, questiona-se, como as obras de Preciado podem contribuir para uma clínica psicanalítica não binária? Deste modo, este trabalho tem como objetivo fazer um levantamento das novas perspectivas de gênero do autor e correlacionar com a literatura da clínica psicanalítica. Por se tratar de conceitos novos e entendendo a urgência de adaptação à contemporaneidade e reciclagem de novos conteúdos no arcabouço teórico da psicologia/psicanálise, justifica-se este estudo e ele se mostra com grande valia no intuito de fazer um paralelo entre novas perspectivas teóricas de gênero e como elas podem auxiliar no trabalho clínico psicoterápico e psicanalítico.
Como hipóteses para este trabalho, esperamos que os escritos deste autor, possam contribuir para definições mais ampliadas e modernas de gênero e fazer uma interfase dos seus conceitos na prática clínica psicanalítica, para além do binarismo de gênero. Este estudo apresenta como objetivo investigar como os conceitos desenvolvidos por Preciado podem contribuir para uma clínica psicanalítica, para além do binarismo de gênero.
REFERÊNCIAL TEÓRICO
Gênero e psicanálise
A construção histórica da temática de “gênero” na psicanálise é conturbada e permeada de constructos históricos e sociais que são importantes de serem destacados. Iniciemos o nosso raciocínio aqui a partir dos escritos de Freud, em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” onde o autor descreve sua visão teórica desta perspectiva. Para o autor, no início da vida psíquica, a questão de gênero é comum em todos os seres humanos é que na fase fálica que esta diferenciação acontece. Nesta fase, o homem então percebe a diferença dos corpos com a presença do pênis, marcando o masculino; e a mulher é marcada então pela castração, ou seja, pela experiência da ausência do pênis, marcando então o feminino. Partindo deste pressuposto falocêntrico, a feminilidade é então, inicialmente, fruto de uma “falta” biológica, convergindo com o psíquico, numa construção psicológica binária e numa visão “naturalista incompleta” da construção de identidade de gênero (Latanzio, 2011).
Teóricos contemporâneos importantes como Ceccarelli (2017) chamam a atenção de que os escritos iniciais da psicanálise precisam ser retomados com mais calma, colocando a importância da análise da construção sócio-histórica dos escritos, que acompanham uma cultura e até mesmo, um paradigma científico instaurado da época. O autor escreve que:
“Como na época de Freud, em relação a orientação sexual, o consenso geral continua rígido em estreita consonância com a moral sexual: sexo, gênero, desejo e orientação sexual continuam a ser entendidos como características ‘naturais’ dos indivíduos. Do ponto de vista da biologia, o sexo é definido pelos genitais: macho/fêmea; as representações e os papéis sociais que se espera de um homem e de uma mulher ditam o gênero; o desejo deveria ocorrer entre sexos opostos; quanto à ‘orientação sexual’, a heterossexual é a norma em consonância com o sexo e o gênero da pessoa, em vista da preservação da espécie” (Ceccarelli, 2017, p.139).
Como podemos observar, na base teórica primeira da psicanálise, gênero segue sendo representado como algo natural ligado ao biológico e por vezes, faltoso no recorte do feminino e da mulher. Outros autores pós freudianos também não conseguiram dar seguimentos mais desconstruídos em relação ao tema. Lacan, por exemplo, desconstrói a questão da sexualidade ligada ao complexo de Édipo e cria a teoria da “sexuação”, chamando a atenção para o registro do simbólico, imaginário e do real. Embora ele teça outras nuances teóricas, o autor também não consegue deslocar a visão de gênero de uma prática binarista, ancorando a prática psicanalítica mais uma vez nesta mesma perspectiva (Cossi, 2019).
Diante destes fatos, emerge na contemporaneidade autores que objetivam (re)construir a visão de gênero na psicanálise, ampliando e reconstruindo em perspectivas teóricas e práticas. Nesta seara, criticando Freud e Lacan, o autor Paul B. Preciado tenta reconstruir, numa visão epistemológica, um outro olhar sobre gênero, corpos e políticas.
Paul B. Preciado e a psicanálise
Paul Beatriz Preciado, é um filósofo espanhol, que constrói sua carreira acadêmica nos Estados Unidos, realizando seu mestrado em Filosofia Contemporânea e Teoria de Gênero e seu doutorado em Teoria da Arquitetura, estudando construção de corpos e gêneros, inspirado em autores como Michel Foucault, Judith Butlher e Donna Haraway. Em 2014, Preciado inicia a transição de gênero, se considerando atualmente como um homem transexual não binário (do Vale, 2023).
O filósofo se considera como um “insubordinado” em seguir, acreditar e viver as teorias psicanalíticas e propõe a construção de um novo aparato teórico para pessoas transexuais. De acordo com Preciado, o corpo trans na psicanálise é considerado como uma metamorfose impossível, fruto de um complexo de édipo não resolvido, flertando com teorias psiquiátricas que visam patologizar estes corpos. Preciado então critica o regime da diferenciação sexual, adotado pela psicanálise e se coloca como um dissidente deste sistema (Romanoff, 2023).
Em sua produção “Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia psicanalistas” (2022), Preciado é convidado pela Escola da causa Freudiana, em Paris, para discursar para um grupo de psicanalistas sobre sua perspectiva e estudos sobre gênero, onde foi extremamente hostilizado pelo público presente, ao ponto de não conseguir terminar o seu discurso. O autor então publica seu texto na íntegra concedendo uma oportunidade de conhecimento ampliado seu objetivo e para dar contorno as críticas a ele empregadas. Nesta obra, o autor faz uma analogia dos corpos transexuais com o “Macaco Vermelho” de Franz Kafka, discorrendo que assim como o macaco que, aprendendo a falar, adentra no sistema humano utilizando a linguagem como saída, corpos transexuais também encontram saídas para o regime da diferença sexual, produzindo seus próprios corpos. Porém, tanto o macaco vermelho quanto os corpos transexuais, pelas teorias psicanalistas, ainda são vistos como monstros, sendo assim, ele ali um monstro que tomava a palavra (Preciado, 2022).
A partir desta breve explanação e seguindo os objetivos deste trabalho, foi realizado a seleção de conceitos inscritos pelo autor, em sua construção autoral de epistemologia de gênero, presente nas duas obras anteriormente citadas e buscar na literatura científica, diálogos para substanciar esta temática.
METODOLOGIA
Este trabalho consiste em um estudo teórico a partir das obras escritas pelo autor Paul Beatriz Preciado. Este estudo foi dividido em três momentos: no primeiro foi realizado a análise das obras teóricas do autor “Eu sou o monstro que vos fala” (2019) e “Manifesto contrasexual” (2004).
No primeiro momento, o objetivo foi identificar seus conceitos sobre gênero e analisá-los. No segundo momento, foi realizada uma revisão bibliográfica da literatura científica, buscando nas bases de dados “Scielo”, “BVS-PSI” e “Google Acadêmico”, artigos científicos que já trabalharam os conceitos de sexualidade e gênero e analisar o estado da arte sobre esta temática.
Para esta busca, foram utilizados os descritores “Paul Preciado”, “Psicologia” e “Psicanálise”, correlacionados, para encontrar os materiais científicos. Como critérios de inclusão dos artigos, foram selecionados mais recentes de publicação, selecionando os artigos publicados no período entre 2014 e 2024, disponíveis integralmente de forma gratuita, no idioma português, avaliando assim a publicação nacional mais recente sobre a temática. Foram excluídos os artigos que não estavam disponíveis integralmente gratuitos, em outros idiomas e que não tenham relação com a temática pesquisada.
Para seleção dos artigos, foi utilizado o método de leitura dos títulos, seguido de leitura dos resumos e por último, leitura do material de forma completa, permanecendo ao final, somente os artigos que envolvam a temática pesquisada de gênero e sexualidade. A partir da seleção final foi realizada uma análise do conteúdo dos artigos. No terceiro e último momento, foi realizada a correlação dos conceitos do autor com a literatura encontrada e uma reflexão sobre como possivelmente podemos utilizá-los na clínica psicanalítica.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Análise dos conceitos em “Eu sou o monstro que vos fala”
O livro “Eu sou o monstro que vos fala” é resultado de uma palestra que o autor foi convidado a proferir, pela Escola da Causa Freudiana, em Paris, no ano de 2019, para 3.500 psicanalistas. O discurso e as explicações de Preciado não foram bem aceitos pelos participantes do evento e ele foi interrompido pela organização do evento, antes de terminar sua apresentação discursiva. Recortes de suas falas foram realizados e amplamente divulgados pela mídia, trazendo interpretações equivocadas das ideias que o autor pretendia transmitir e ele decide publicar o texto integralmente, para melhor interpretação de suas contribuições para o meio psicanalítico (Preciado, 2019).
Na crítica proposta pelo autor, o mesmo coloca que vivemos dentro de um modelo de regime epistemológico, baseado numa máquina política e econômica de produção, pautada na diferenciação sexual dos corpos biológicos, produzindo o modelo de binarismo de gênero, modelo estruturado em um molde de construção social do patriarcado heterocolonial. Este regime, nomeado como “epistemologia da diferença sexual” é baseado em um modelo histórico “monossexual”, onde somente a subjetividade e o corpo masculino foi considerado como possibilidade de existência e modelo de ser no mundo (Preciado, 2019).
Preciado explica que o paradigma monossexual funciona por semelhanças, no qual o corpo feminino funciona como uma variação hierarquicamente inferior a masculina, impedindo tanto o reconhecimento anatômico singular, como o de sujeito político na sociedade, de forma igualitária em estruturação de direitos e poderes sociais. Deste modo nas primeiras conceituações, o corpo feminino foi tratado como a primeira “inversão” dos corpos. Neste momento, ocorre o assujeitamento das relações de poder e a criação de uma “estética da diferença sexual”, que ocasionou na domesticação do corpo feminino (Preciado, 2019).
Acompanhando este modelo de ciência, produção de modus de existir e de construção de sujeitos, a psicanálise e a psicologia incorporam este modelo epistemológico e adicionam sentido ao processo de subjetivação, acompanhando o regime de diferenciação sexual, pautado no gênero binário e heterossexual. A psicanálise então traz em sua história, o desenvolvimento de uma ciência do inconsciente patriarco-colonial, baseada no regime da diferenciação sexual, fabricando “psiques feminina e masculina” e deixando de fabricar significados aquilo que está fora deste paradigma epistemológico (Preciado, 2019).
O autor escreve que na psicanálise, há uma tentativa de construção de um “homem universal/identidade universal” (como um só modelo/forma de Ser/existir), construída muitas vezes em um molde de “homem e heterossexual”. Para o autor, esta contribuição serviu para a elaboração de uma linguagem sobre a sexualidade no corpo científico da psicanálise, na inoculação de sentimentos de identidade sexual e de gênero e criação para elaboração do status de “normal e patológico”, oferecendo uma narrativa patriarcal e colonial, baseada na auto ficção (Preciado, 2019).
Com a adoção desta epistemologia pela psicanálise, ocorre então a desnaturalização da diferença sexual e a patologização da transexualidade, tanto por Freud como por Lacan, principais precursores dos modelos psicanalíticos. Com isto houve uma construção histórica do aparelho psíquico das pessoas em processo de “tran-sexualidades”, como uma “metamorfose impossível”, situada para além das neuroses, na borda da psicose e fruto de um complexo de édipo incorretamente resolvido. Preciado escreve que “desafiar o binarismo de gênero, significa penetrar no campo das psicoses” segundo os primeiros escritos psicanalíticos (Preciado, 2019).
Explicações teóricas como, “pessoas que foram vítimas psicóticas de um erro onde ocorre a confusão do órgão com o significante” ou “de pessoas que tiveram fracasso em resolver o complexo de Édipo”, ou até “uma patologia próxima ao delírio narcísico”; foram construções teóricas que enredaram e justificaram por muitos anos, os tratamentos psicanalíticos sobre as trans-identidades. Várias denominações psicanalíticas como “instinto sexual ao contrário, “homossexualidade”, “migração da alma”, “machos afeminados”, “hermafroditas psicossexuais”, “paranoicos”, “metamorfose sexual”, “psicopata transexual”, “doentes da identidade de gênero” e “disforia de gênero”, foram nomenclaturas e conceituações construídas para nomear essas pessoas na construção histórica psicanalítica (Preciado, 2019).
Deste modo, toda a expressão de sexualidade que foge desta norma, é investigada pela psicologia e a psicanálise como um possível “marco patológico” no desenvolvimento da psique humana. O autor explica que uma estratégia muito utilizada na análise do discurso psicanalítico, utilizada até nos dias de hoje, é de procurar na história pré-natal e/ou infantil destes grupos divergentes de expressão da sexualidade, os mecanismos de traumatismo que podem ter desencadeado está “inversão”. Ele coloca que a mesma estratégia não ocorre na identificação binaria e nas orientações “hetero-normativas” (Preciado, 2019).
Preciado coloca que nenhum psicanalista se preocupa em analisar no discurso hetero-cis- normativo destas pessoas, os momentos e os acontecimentos que as fizeram se identificar e se atrair afetiva e sexualmente, em suas relações, por exemplo. Ninguém pergunta para estas pessoas, por exemplo, quando ela começou a se atrair pelo gênero oposto, ou a ser homem ou mulher, tratando este evento hetero-cis-centrista, como algo natural da condição humana (Preciado, 2019).
Preciado (2019), para além desta problemática epistemológica, oferece então uma subversão a este sistema, construindo a possibilidade onde pessoas que não se identificam com o regime binário de diferença sexual, precisam “imaginar uma saída” deste sistema, muitas vezes “fabricando” suas próprias saídas, deixando de “ser mulher” no abandono da feminilidade e/ou deixando de “ser homem”, no abandono da masculinidade. Esta saída passa por vezes, em repetição dos gestos que enfrentam/resistem esta normalidade binária, para gerar um outro caminho, ou seja, um novo modus de “ser/expressar no mundo”. A saída que Preciado, na sua história pessoal, fabrica para o abandono da sua “condição feminina” é a administração de hormônio testosterona, que “fabrica” então uma nova voz, permitindo sua saída do sistema feminino. O mesmo fala que não se trata de escolher a liberdade, mas sim de fabricá-la. Para Preciado, o uso da hormonização, por exemplo, possibilita o despertar de uma nova genealogia fenotípica, uma descolonização do corpo e possibilita novas formas de existência.
Estratégias citadas, segundo Preciado, para a fabricação de novos modelos e que talvez aqui podemos utilizar na construção de uma psicanálise não binária, são práticas para abolir o terror de ser “anormal” (aceitar novas possibilidades de existir no mundo, mesmo que únicas) e recusar qualquer simplificação dos processos, deixando de supor onde o processo vai chegar e o que ele vai gerar, possibilitando perceber, sentir e até mesmo nomear, a construção de uma nova epistemologia de gênero. Segundo o autor “é preciso descolonizar, desidentificar e desbinarizar”, para fabricação de saídas da binariedade. Ele acrescenta que “Em um processo trans, não apenas necessário tornar-se homem, como perfeitamente é possível “ser” de novo mulher, ou ainda outra coisa, caso seja necessário ou desejável (Preciado, 2019 p. 43).
Deste modo, fazendo uma junção das proposições de Paul Preciado, podemos aprender nesta obra que existe uma visão epistemológica binária, historicamente construída, pelo qual é adotada pela psicologia e pela psicanálise, tendendo a patologizar as pessoas desviantes ou não praticantes deste sistema. A proposta de Preciado, sugerida em seu texto, é que as pessoas, principalmente as transexuais e não binárias, fabricam saídas, que podem ser no campo do imaginário ou real, construindo saídas deste sistema, que não estão necessariamente no campo patológico das psicoses ou perversões. O autor cita que “o psicanalista é epistemologicamente e politicamente, um corpo binário e heterossexual, até que se prove o contrário”, isto faz com que emerja a necessidade, tanto na formação dos novos psicólogos e psicanalistas, de uma subversão aos teóricos iniciais e a adoção de novas bases teóricas e epistemológicas na escuta de pessoas com novas perspectivas de gênero, como por exemplo, os escritos deste autor.
Com isto, estes escritos de Paul B. Preciado podem nos auxiliar a entender que na escuta clínica psicanalítica, de pessoas que subvertem este sistema, possivelmente os “desvios da norma”, que podem ser muitas vezes lidos como “delírios” ou algo que “saem do campo da realidade”, muitas vezes podem ser apenas a saída que a pessoa encontra por não se encontrar/querer/praticar comportamentos da epistemologia da diferença sexual, e estar fundando então a sua própria saída. Ou seja, trans-identidades podem ser uma fabricação de um novo sistema epistemológico de gênero, que não necessariamente está ligado a uma psicopatologia.
Análise dos conceitos em “Manifesto contrassexual”
Continuando sua contribuição para uma construção de algo que escapa ao modelo de binarismo de gênero, Preciado fórmula então uma nova epistemologia teórica em seu livro “Manifesto contrassexual” (2004), criando a “epistemologia da contrassexualidade”. Em seu doutorado, em um programa de arquitetura, nos Estados Unidos, o autor formula que todos os corpos são passiveis de uma plasticidade sexual, sendo assim possível a criação e adoção de um novo regime de desejos e práticas, sendo possível construir corpos em termos arquitetônicos, o que ele chama de “biomodelos”.
Segundo Preciado (2004), a contrassexualidade é uma análise crítica da diferenciação biológica dos corpos e das performances normativas inscritas sobre eles. A proposta deste modelo epistemológico é a substituição do modelo naturalista, por um modelo onde as pessoas se reconheçam arquitetas de suas próprias praticas. O modelo contrassexual propõe a desconstrução do sistema de naturalização de gênero e das práticas sexuais, criando oposição aos modelos homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade. Preciado escreve que:
“a contrassexualidade supõe que o sexo e a sexualidade (e não somente o gênero) devem ser compreendidos como tecnologias sociopolíticas complexas; qual é necessário estabelecer conexões políticas e teóricas entre o estudo dos dispositivos, os artefatos sexuais e os estudos sociopolíticos do sistema de sexo/gênero. (Preciado, 2022, p.36).
Para Preciado, as saídas do sistema binário de gênero podem passar por “bioescrituras”, ou seja, pela fabricação/construção bio-tecnológica de aparatos que proporcionem a criação de novas formas de ser, habitar e praticar as relações no mundo. Um exemplo que o autor utiliza, são a criação de acessórios sexuais como biopênis (dildos) e biovaginas e demais próteses artificiais que proporcionem novas performances de práticas sexuais, por exemplo. Outro exemplo é a utilização de fármacos, como a testosterona ou seus bloqueadores, para produção biológica, nos próprios corpos, de saídas do sistema binário, ou também, os implantes de próteses de seios de silicone em mulheres trans, por exemplo.
Concluindo, as ideias do autor em sua produção e na adoção de novo modelo de contrassexualidade é pautado na fabricação anatômica, fisiológica, artificial e/ou social, de novas formas de ser no mundo, saindo do que já está estabelecido com a construção de modelos binaristas. Preciado chama a atenção para a também naturalização destas possibilidades, para longe do campo das psicoses e perversões. Deste modo, ele contribui com um modelo epistemológico que nos ajuda a refletir se o acontecimento, ou “a saída” que o paciente está apresentando/construindo, que de uma forma de leitura social poderia estar sendo ligada ao campo da “fuga da realidade”, ou até mesmo, de uma “ideia delirante”, não poderia ser a construção de um caminho fora da epistemologia da diferenciação sexual, ou seja, a adoção de uma prática de contrassexualidade.
Paul B. Preciado e a produção literária psicanalítica brasileira
Na busca de artigos científicos nas bases de dados, foram encontrados um total de 31 publicações nacionais. A partir da análise foram selecionados 7 artigos que obtiveram conteúdo com relação direta com o assunto pesquisado e atendiam os critérios propostos na metodologia. No cruzamento dos caracteres booleanos, houve maior dificuldade em encontrar materiais, sendo utilizado a técnica de busca pelo nome do autor “Paul Preciado” e realizando a seleção de um em um, ou utilizando também o termo “contrassexualidade”, surgindo mais artigos na busca, o que implicou em um ajuste na metodologia.
Foram encontradas publicações nas áreas da filosofia, literatura, ciências sociais, direito, antropologia, psicologia e psicanálise. Seus constructos teóricos estão sendo utilizados em vários recortes e fornecendo novas formas de olhar as relações humanas e suas construções. Abaixo será apresentado uma tabela contendo a descrição breve dos artigos encontrados:
Tabela 01: Artigos encontrados na revisão da literatura nas bases “Scielo”, “BVS-PSI” e “Google Acadêmico”.
Título | Autor(es) | Ano de Publicação |
Uma resposta a Paul B. Preciado | Denise Maurano | 2019 |
Psicanálise e Dissidências de Gênero: Questões para Além da Diferença Sexual | Rafael Cavalheiro e Milena da Rosa Silva | 2020 |
Preciado, Laplanche, Freud: desobstruindo a escuta psicanalítica do Sexual | Rodrigo Lage Leite | 2021 |
(Um) Currículo cultural contrassexual? Movimentos que possibilitam corpos em trânsito | Cyndel Nunes Augusto e Marcos Garcia Neira | 2021 |
O Gênero (de)Preciado: a Psicanálise e a Necrobiopolítica das Transidentidades | Vinícius Moreira Lima | 2022 |
Corpos dissonantes: O ingresso da atleta transexual Tifanny na Superliga feminina de vôlei e a desestabilização da unidade corporal | Guilherme Sant'ana | 2022 |
No Divã de Paul B. Preciado: Psicanálise e (Des)obediência Epistêmica | Rafael Cavalheiro; Mariana Pombo e Vitor Hugo Triska | 2024 |
Fonte: elaborado pelos autores.
No que tange o contexto deste trabalho, na psicanálise, o trabalho de Leite (2021), analisando as intersecções entre as teorias de Freud, Lapanche e Preciado, mais especificamente os conceitos de sexualidade infantil “perverso-polimorfa” de Freud e “Sexual” de Lapanche, o autor traz que as ideias de Preciado são um convite para retomar a estes conceitos e questionar “o osso” da teoria psicanalítica, entendendo que os movimentos de contrassexualidade são uma reinterpretação dos conceitos de “recalque dos desejos perverso-polimorfos e o sexual”, possibilitando a construção de um erotismo humano mais plural.
Em seu trabalho, Leite (2021) traz um caso clínico exemplificando como a escuta clínica pode ser desconstruída a partir das ideias de Preciado, desobstruindo para uma escuta não binária. No caso, um nó na vida do paciente nomeado “Adriano”, homem cis- homossexual, é a sua não identificação com o masculino/masculinidade, apresentada pelo seu pai, e sua identificação com coisas que pertencem ao feminino/feminilidade de sua mãe, trazendo sintomas de angústia personificados em um humor deprimido, ansiedade e apatia pela vida.
Em uma intervenção do analista, sobre a naturalização dos desejos e acolhimento dos mesmos, propondo uma aceitação de que o paciente não precisava se identificar com pai e aceitar a naturalidade da identificação de aspectos sociais apresentados por sua mãe, os sintomas desaparecem e o cliente apresentou maior conforto em seu cotidiano (Leite, 2021). Este caso evidencia que a desconstrução da escuta para um não binarismo, auxilia em tratamentos psicanalíticos, e possíveis melhora de sintomas.
No trabalho intitulado “Psicanálise e dissidências de gênero: questões para além da diferença sexual”, os autores Cavalheira e Silva (2020) trazem um recorte teórico histórico sobre o escopo literário da psicanálise, sobre as questões de gênero e fazem comparações com as novas teorias queer. Os autores trazem que por muitos anos, o discurso psicanalítico desconsiderou a pluralidade de gênero, produzindo leituras reducionistas e patologizantes, quando questionados o binarimos das questões de sexo e gênero.
Os efeitos desta produção, culminam em um apagamento das dissidências de gênero e uma negação da materialidade dos corpos, produzindo uma perturbação na escuta psicanalítica. Este discurso hegemônico produziu por muitos anos, a nomeação fundamental na diferenciação sexual (Cavalheira e Silva, 2020).
No Brasil, somente no ano de 2007, se começou a produzir discursos discordantes desta perspectiva, entendendo, pelas contribuições de Judith Butler e de Preciado, a sexualidade como um dispositivo discursivo, e que os seres humanos possuem outros códigos para (re)pensar sua sexualidade, para além da binaridade, da anatomia e da hierarquia, chegando aqui em um regime de multiplicidade de formas de se existir no mundo. Desta forma, os trabalhos de Preciado contribuem para a inauguração da existência de uma “multidão queer”, com uma variedade de dispositivos políticos que podem engendrar uma dissidência de gênero (Cavalheira e Silva, 2020).
Cavalheira e Silva (2020) situam ainda, como as premissas de Lacan e seus sucessores, localizando o registro da vinculação de gênero ao registro do imaginário, especialmente o “real do corpo”, desqualificam a teoria queer, e colocam estas pessoas no campo da perversão, mantendo a ideia de um gozo ilimitado e de uma exaltação a onipotência infantil. Com esta e outras leituras do campo freudianas, estes autores fazem uma contribuição importante, indagando sobre a “ausência da análise da contratransferência do analista”, para com os analisandos.
Estes autores colocam que assumir estas premissas lacanianas, por exemplo, fazem com que o analista assuma uma série de preconceitos e uma busca etiológica do que “deu errado” no desenvolvimento daquele ser humano, ocasionando uma “turvação da escuta”. O sentimento de “infamiliaridade” com as dissidências de gênero, pode levar a produção terapêutica de um vínculo mortífero para o analisando. Como contraproposta, os autores sugerem que apoiar o suporte teórico psicanalítico, em suportes teóricos como Buther e Preciado, auxiliam os psicanalistas a “pensar gênero como um espectro e não com um estanque”, proporcionando “limpeza” e consequentemente, ampliação da escuta clínica (Cavalheira e Silva, 2020).
Já no estudo de Lima (2022), o autor faz uma contribuição reflexiva sobre o conceito de “necropolítica” (como promover a morte, fazer a morte ou deixar morrer) de Achille Mbembe, à psicanálise e as transidentidades. O autor utiliza o termo “necrobiopoder” como um campo de estudos contemporâneos que apontam as ações do um grupo político na promoção do apagamento de práticas de cuidado.
Neste trabalho é apresentado que por muitos anos, a psicanálise proporcionou ausência de escutas para as dissidências de gênero, subalternação destas identidades e extermínio da subjetivação destes grupos. O autor coloca que Preciado traz um processo de reconfiguração teórica, prática, subjetiva e política, como proposta para uma reorganização da instituição psicanálise (Lima, 2022).
Outro ponto que Lima (2022) chama a atenção, utilizando o termo lacaniano de transferência negativa, é que a resistência do analista em escutar a existência de dissidências de gênero, produz formas de normatizá-lo, produzindo uma contratransferência a partir do que ele chama de “soma dos preconceitos do analista”. O autor sugere que para a escuta, devemos abandonar o imaginário de um ser unívoco, unitário e unificado em um campo, criando assim uma linha de fuga para práticas de bionecropolítica contemporâneas.
Em contrapartida, outros autores trazem contribuições literárias críticas, apresentando argumentos contrários às ideias de Preciado. Maurano (2019), psicanalista brasileira, publicou um artigo de opinião intitulado “Uma resposta a Paul Preciado”, onde a mesma, no lugar de fala de uma psicanalista, discorda sobre os argumentos apresentados pelo autor, em seu discurso em Paris. A autora coloca que o discurso do autor se coloca como uma “militância política” e que apresenta ideias poucos profundas sobre o que a psicanálise contemporânea oferece. Para Maurano, autores como Lacan trouxeram contribuições que não foram abordadas pelo autor, como um mergulho maior na teoria da sexuação e sua relação com o gozo, ressaltando a importância da “diferencia sexual” para estruturação psíquica.
Outro trabalho desenvolvido por Cavalheiro, Pombo e Triska (2024), analisando os discursos críticos à fala de Preciado, trazem uma análise do discurso de Maurano (citada acima), do psicanalista francês Maleval, e do argentino Alfredo Eidelsztien. No trabalho destes autores, eles trazem que os três psicanalistas trazem argumentações que se opõem as ideias de Preciado, principalmente no que diz respeito a “epistemologia da diferença sexual”. Os autores defendem que a psicanálise possui um escopo teórico mais abrangente que o trago pelo autor e que suas críticas possuem pouca fundamentação, criticando quem apoia o seu discurso.
Porém, os autores do artigo trazem que a crítica argumentada por estes psicanalistas, só mantem a diferenciação sexual e pouco contribuem para uma atualização do escopo teórico e de novas formas de analisar o inconsciente humano. Os autores ainda acrescentam que a própria critica apresenta uma argumentação “rasa” e atemporal sobre o assunto, fomentando um discurso psicopatológico para as transidentidades (Cavalheiro, Pombo e Triska 2024).
Além da psicanálise, opto por citar aqui que os escritos de Preciado atingem outros campos de “saber-fazer”. No trabalho de Augusto e Neira (2021), no campo das ciências da Educação física, num recorte psibiológico, os autores investigaram como os conceitos de Butler no campo da performance e de Preciado no campo da contrassexualidade, podem favorecer a criação de novas prática corporais inovadoras.
Neste trabalho, utilizando estes conceitos, os autores constroem uma criação e avaliação teórico-prática, de atividades no campo da educação física, como movimentos de dança. Novos personagens de gênero em campos dominados pelo binarismo, corpos com deficiência realizando práticas corporais, atividades utilizando os sentidos do corpo como tato, olfato e visão. O objetivo do trabalho foi construir as práticas curriculares, utilizando propostas contrassexuais e avaliá-las, pelas lentes dos docentes e dos participantes das práticas corporais contrassexuais propostas. A construção proporcionou novos olhares, saberes e práticas, mesmo que desafiadoras, na reconstrução e reconfiguração curricular, trazendo aplicabilidade de práticas contrassexuais, desconstruindo o pensamento binário hegemônico (Augusto e Neira 2021).
Para encerrar, com outro exemplo publicado na literatura, fazendo uma interligação com os pressupostos de Preciado e a contemporaneidade, um artigo publicado faz uma análise do caso da jogadora de vôlei transexual brasileira, Tifanny Abreu, profissional do alto rendimento do vôlei profissional feminino. Sant’Anna (2022) publica o artigo intitulado “Corpos dissonantes: o ingresso da atleta transexual Tifanny na Superliga feminina de vôlei e a desestabilização da unidade corporal” trazendo como um corpo biologicamente lido como masculino, tem dificuldades na aceitação social de uma performance feminina, nas instituições.
O artigo traz como a atleta que se identifica como uma mulher transexual, é por muitas vezes lida como “um homem”, deslegitimando sua identidade social e seu processo de transição, demonstrando como epistemologia da diferenciação sexual se apresenta e tem poder político ainda na contemporaneidade. O ator traz uma narrativa de como ainda somos rígidos (instituições e pensamentos populares) com relação as questões de gênero, permanecendo no esporte, até os dias de hoje, categorização binária apenas como equipes “masculina” e “feminina”. Esta produção científica traz, como a presença da jogadora Tifanny subverte a norma social de organização (numa pratica de contrassexualidade), e “obriga” a construção de novos modos de olhar para estruturação social contemporânea (Sant’Anna, 2022).
Deste modo, exemplificando a importância da criação de um arcabouço teórico-prático, autores contemporâneos, como Preciado, e suas formas de construção de epistemologias não binárias, fazem necessárias para a mudança de currículos acadêmicos, para criação e autorização de novas práticas de expressão de gênero e práticas sexuais, bem como a reinvenção na própria sociedade, da estruturação e aceitação de novas emergências de gênero.
CONCLUSÃO
Conforme podemos observar, o autor Paul Beatriz Preciado constrói um modo subversivo de pensar gênero na contemporaneidade, realizando construção teórica- filosófica de uma teoria inovadora, a partir de precursores como Butler e Foucault.
Nos materiais utilizados para a construção deste trabalho de conclusão de curso, podemos inferir que Preciado desenvolve uma crítica à ideia do modelo hegemônico de epistemologia sobre os corpos, chamado de epistemologia da diferenciação dos corpos, trazendo como única possibilidade de existência, o binarismo de gênero, ligando a única prática performática do corpo feminino, exercer uma “feminilidade” e um corpo masculino, à “masculinidade”. Este modelo foi adotado pela psicologia e pela psicanálise (se ainda não é) como aporte teórico que fundamentou e sustentou a escuta clínica por muitos anos e influencia até os dias de hoje.
A proposta desenvolvida pelo autor Paul Beatriz Preciado é a de subverter este sistema, criando então uma outra epistemologia, nomeada como contrassexualidade, onde os corpos e as performances, podem ser “fabricadas/construídas” pelos próprios seres humanos, construir então uma possibilidade de multiplicidade de se performar gênero na sociedade. Ou seja, para Preciado, é possível arquitetar, construir e viver “formas de ser no mundo”, para além da perspectiva binária.
Para a psicanálise, as ideias do autor e a literatura disponível, mostram a adesão inicial da epistemologia da diferenciação dos corpos em seu arcabouço teórico psicanalítico e mostra que este modelo favorece a bionecropolitica das transidentidades, sendo necessária a construção de novos modelos que sejam inclusivos e naturalizadores, de corpos e formas de ser “trans” no Brasil. As teorias e os constructos de Preciado se apresentam como arcabouço teórico que favorecem a desconstrução e a construção neoparadigmática no olhar contemporâneo sobre gênero e sexo, emergindo como uma potencialidade nos constructos teóricos psicanalíticos.
Outro ponto importante ressaltado pelos estudos atuais sobre a temática, é que há ausência da adoção de uma nova epistemologia na psicanálise, faz com que os eventos de contratranferencia possam acontecer, impossibilitando a cura pela fala, emergindo como uma necessidade para o campo psicanalítico, na naturalização da existência de novas formas de subjetividade, para o trabalho psicanalítico possa acontecer.
Como limitações encontradas neste estudo, podemos destacar que Preciado ainda é pouco utilizado na Psicologia e na Psicanálise, sendo evidenciado pelo baixo acervo teórico encontrado na literatura, além de ausência da utilização de seus estudos em outros desenhos de estudo, para além de teóricos. Este estudo também se ateve somente a duas obras teóricas de Preciado, sendo um fator limitante, sendo que este possui outras construções literárias sobre a temática, que também contribuem para os estudos de gênero e psicanálise, caracterizando uma limitação.
Findando, os constructos desenvolvidos de Preciado podem subsidiar a “limpeza dessa escuta” e despatologizar as diversas formas de existência. Conclui-se então que o autor e seus escritos contribuem para uma construção de uma clínica não binária e fornece arcabouço teórico para arquitetura de escuta clínica para a psicologia e a psicanálise, podendo ser utilizado tanto na estruturação curricular da psicologia, como nos ensinamentos de uma prática psicanalítica em novas perspectivas de sexualidade e gênero.
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Declaração de Interesse
Os autores declaram não haver nenhum conflito de interesse.
Financiamento
Financiamento próprio.
Agradecimentos
Colaboração entre autores
O presente artigo foi escrito por Gian Batista Carmo, sob a orientação do Doutor Sérgio Domingues e a colaboração de todos os demais autores.