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Luana Rodrigues Rocha e Wendel Expedito Batista Martins. Freud, um aprendiz de Shakespeare? Uma análise da interação entre a obra "Macbeth" de Shakespeare e a teoria psicanalítica freudiana. Revista Ciência Dinâmica, vol. 15, 2024. Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.
Recebido em: 17/05/2024 Aprovado em: 10/09/2024 Publicado em: 26/09/2024
CIÊNCIA DINÂMICA – Revista Científica Eletrônica FACULDADE DINÂMICA DO VALE DO PIRANGA
25ª Edição 2024 | Ano XV - e252406 | ISSN – 2176-6509
DOI: 10.70406/2176-6509.2024.265
2º semestre de 2024
FREUD, UM APRENDIZ DE SHAKESPEARE? UMA ANÁLISE DA INTERAÇÃO ENTRE A OBRA "MACBETH" DE SHAKESPEARE E A TEORIA PSICANALÍTICA FREUDIANA FREUD, A SHAKESPEARE'S APPRENTICE? AN ANALYSIS OF THE
INTERACTION BETWEEN SHAKESPEARE'S "MACBETH" AND FREUDIAN
PSYCHOANALYTIC THEORY
Luana Rodrigues Rocha1, Wendel Expedito Batista2.
1 Discente do Curso de Psicologia, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, ORCID: https://orcid.org/0009-0003-1491-8509.
2Docente no Curso de Psicologia, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9585-8584.
*Autor correspondente: luanarodriguesrochalrr@gmail.com
Resumo: O presente artigo investiga as características psicológicas e psicanalíticas dos protagonistas Macbeth e Lady Macbeth na peça "Macbeth" de William Shakespeare, com o propósito de conectar a obra literária de Shakespeare à teoria psicanalítica de Sigmund Freud. Através de uma análise qualitativa, fundamenta-se nos dados biográficos de Freud e nas interpretações de renomados críticos literários, como Harold Bloom e o filósofo Hegel. São examinadas duas versões da peça: uma adaptação em prosa por Júlio Emílio Braz (2021) e uma versão teatral adaptada por Rafael Raffaelli (2008). Os resultados evidenciam uma afinidade entre Freud e Shakespeare, destacando a influência duradoura do autor na perspectiva de Freud acerca da natureza humana.
Palavras-Chave: Shakespeare; Freud; Psicanálise; Psicologia; Macbeth.
Abstract: This article investigates the psychological and psychoanalytic characteristics of the protagonists Macbeth and Lady Macbeth in the play "Macbeth" by William Shakespeare, with the purpose of connecting Shakespeare's literary work to Sigmund Freud's psychoanalytic theory. Through a qualitative analysis, it is based on Freud's biographical data and on the interpretations of renowned literary critics, such as Harold Bloom and the philosopher Hegel. Two versions of the play are examined: a prose adaptation by Júlio Emílio Braz (2021) and a theatrical version adapted by Rafael Raffaelli (2008). The results show an affinity between Freud and Shakespeare, highlighting the author's lasting influence on Freud's perspective on human nature.
Keywords: Shakespeare; Freud; Psychoanalysis; Psychology; Macbeth
Neste artigo, examinaremos a obra “Macbeth”, de William Shakespeare, e exploraremos a sua influência na psicanálise, investigando de que maneira a peça serviu como uma preciosa fonte de inspiração para a formulação da teoria e para o desenvolvimento da prática clínica freudiana. Para isso, partiremos de uma análise aprofundada e hipotética dos personagens criados por Shakespeare, elaborando uma relação de proximidade entre literatura e psicanálise. Analisaremos a trama em duas versões: em prosa, adaptada por Júlio Emílio Braz (2021), e em texto teatral, adaptada por Rafael Raffaelli (2008b).
Interpretar Shakespeare é uma tarefa no mínimo desafiadora, pois, devido à sua genialidade, o escritor oferece um profundo mergulho na condição humana. Portanto, é constantemente estudado, interpretado e revisitado por filósofos, críticos e aqueles interessados em compreender mais sobre a arte e a essência da humanidade. Dito isso, talvez seja custoso apresentar algo inovador sobre Shakespeare, dados os inúmeros materiais prévios sobre suas produções artísticas, sendo natural cair em artimanhas de repetição de aspectos já investigados por mais de um autor. No entanto, um dos objetivos propostos é transcender a abordagem convencional ao promover uma conexão direta entre determinadas teorias freudianas e uma obra específica de Shakespeare, proporcionando um enfoque que vincula a peça à psicanálise tradicional.
Em primeiro momento, no tópico “Freud e a Literatura Shakespeariana”, será exposta e discutida a relação de Freud com a literatura de Shakespeare, confirmando as afirmações por meio de comentários do próprio Freud e de outros relevantes escritores. Posteriormente, haverá uma análise do casal principal da obra “Macbeth”. Esse tema será dividido em duas partes distintas que se complementam: a primeira parte, “Conflitos Psicológicos em Macbeth: Moralidade e Ambição”, consiste no desmembramento do protagonista, apresentando suas questões intrínsecas, mesmo as mais desconfortáveis e inaceitáveis socialmente. Enquanto a parte secundária, “Lady Macbeth: Explorando a Sexualidade e a Loucura”, permeia a Lady Macbeth, uma personagem enigmática que Freud analisou psicologicamente, mas sem qualquer desfecho definitivo. Diante das características do par romântico, será possível contemplar o potencial destrutivo da ambição desenfreada e os efeitos corrosivos da culpa não resolvida na psique humana.
É válido ponderar que embora tenham vivido em diferentes momentos históricos e estejam em campos disciplinares distintos, Shakespeare e Freud possuem certa correspondência e complementaridade na forma em que compreendem o funcionamento humano. Tendo isso em vista, a importância de correlacionar Shakespeare com Freud reside em um enriquecimento da perspicácia sobre o caráter do homem, expondo nuances ocultas ainda mais fascinantes, que essa abordagem interdisciplinar pode fornecer e, então, estabelecer uma conexão mais apreciável entre o passado e o presente, destacando a atemporalidade desses autores e sua contínua relevância.
De acordo com Harold Bloom (2010), importante intérprete das obras literárias tradicionais, em sua publicação intitulada “O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo”, William Shakespeare corresponde ao centro do cânone literário, ou seja, é o sujeito fundamental quando estuda-se literatura. Desse modo, para o autor, Shakespeare desenvolveu os maiores clássicos da história, explorou o interior humano (o inconsciente) antes mesmo de
S. Freud existir, e com isso influenciou as futuras gerações de artistas em suas criações.
Por isso, as produções culturais acumuladas depois de Shakespeare recorrem às obras e aos personagens desenvolvidos pelo escritor. Esse fenômeno repercute em produções culturais contemporâneas, como o filme “10 Coisas que Eu Odeio em Você”, dirigido por Gil Junger, e a novela “O Cravo e a Rosa”, de Walcyr Carrasco, posto que ambas as obras se inspiram no clássico shakespeariano “A Megera Domada” (Carvalho, 2015).
Além disso, é possível estabelecer uma relação significativa entre Shakespeare e a psicanálise freudiana. Na tragédia “Macbeth”, que explora a dualidade das forças metafísicas (atuantes em um plano além do físico), Freud (1974) utilizou essa peça para discutir o conceito de “ruína do êxito”. Este termo refere-se à angústia e frustração experimentadas por aqueles que, ao realizarem seus maiores desejos, enfrentam um profundo sentimento de culpa, como exemplificado pela protagonista Lady Macbeth (Moraes Godoy, 2015).
Assim, ao investigar o impacto de Shakespeare na psicanálise, emerge como hipótese de pesquisa que os exemplares do dramaturgo foram uma fonte de referência e inspiração para Freud, contribuindo para aprofundar sua compreensão das faculdades mentais e de sua prática clínica. Esta abordagem específica busca explorar uma conexão ainda não amplamente discutida na literatura existente, estabelecendo um vínculo direto entre os elementos trágicos presentes na obra “Macbeth” e o desenvolvimento de conceitos fundamentais da psicanálise.
Conforme Freud (2015), um escritor literário ocupa uma posição intelectualmente superior em relação às pessoas comuns, incluindo cientistas e psicanalistas, devido à sua aptidão em se alimentar de fontes inacessíveis à maioria, possuindo um conhecimento profundo da espiritualidade humana. No entanto, a questão que surge é: de que forma as obras de Shakespeare, essencialmente “Macbeth”, se manifestaram na psicanálise, contribuindo para o desenvolvimento e entendimento dos complexos conceitos psicanalíticos? Essa é a pergunta norteadora desta pesquisa, que exige uma avaliação minuciosa do tema.
Na tentativa de esclarecer os encontros entre a literatura e tal metapsicologia espera-se descobrir novas perspectivas sobre o emaranhado da condição humana, oferecendo uma abordagem interdisciplinar favorável para ambas as disciplinas.
Não é possível discorrer sobre a literatura sem recorrer a William Shakespeare, como não é compreensível explorar a psicanálise sem evocar Sigmund Freud. As tragédias shakespearianas, como “Hamlet” e “Macbeth” são repletas de metáforas atemporais que possibilitam as mais variadas interpretações do ser humano em sua integridade, anunciando a originalidade do autor e justificando o motivo pelo qual Freud foi inspirado pelas obras do grande poeta e dramaturgo inglês.
A interface entre a literatura e a psicanálise debruça-se sobre a decomposição do interior dos personagens enigmáticos construídos por Shakespeare. Isso se revela na ambiguidade dos sentimentos vivenciados pelos protagonistas e coadjuvantes, bem como na influência dos pensamentos, por mais deteriorados que sejam, sobre os comportamentos do sujeito. Em congruência com as considerações de Freud, a assertiva de que o pensamento funciona como um ensaio prévio à ação é apresentada de maneira sucinta. Essa concepção, que delineia a compreensão do autor sobre o processo cognitivo, é amplamente explorada em diversas obras, sendo “O Eu e o Id” uma delas. Nesta obra específica, Freud desenvolve o pensamento como a contraparte psíquica da ação, alinhando-o aos deslocamentos de energia psíquica que visam à descarga motora da excitação (Freud, 2011).
A obra “Macbeth” retrata a história de um general escocês, Macbeth, que, após a sua vitória no campo de batalha, retorna à Escócia medieval, mas durante o seu percurso é interrompido e, junto com seu companheiro de guerra Banquo, depara-se com um trio de bruxas
as quais profetizam o seu futuro alegando que o protagonista receberá um novo título e será o próximo rei da Escócia. Por conseguinte, a tragédia “Macbeth” possui como centro da peça teatral o sortilégio das três bruxas e a influência do desejo humano nas ações do casal principal bem como as terríveis consequências que a busca pela realização desse desejo pode acarretar. Por esse motivo, a literatura shakespeariana opera com um caráter de “psicologia da moral” nos auxiliando na compreensão dos diversos fatores psicológicos que influenciam o comportamento de acordo com os padrões morais que um indivíduo considera como certo ou errado.
Outro ponto de extrema importância explorado em “Macbeth” e, consequentemente, por Freud é a manifestação do inconsciente através dos sonhos. Na análise psicanalítica, Freud (2019) em “A interpretação dos sonhos” posiciona com centralidade o caráter onírico dos sonhos, já que nesse momento as defesas do ego são reduzidas e, em contrapartida, as partes inconscientes do aparelho psíquico conseguem se expressar com maior evidência. Em “Macbeth”, Shakespeare (2008b) ilustra essa teoria ao descrever personagens que temem comerem sua refeição e dormirem perturbados pelos terríveis sonhos que os assombram durante toda a noite, eles consideram preferível estar entre os mortos do que experimentar o mundo onírico. Dito isso, Macbeth reconhece as consequências dos seus atos sanguinários em sua vida noturna, visto que os seus pensamentos recriminatórios se manifestavam quando o personagem adormecia. Paralelo a isto, Freud (2019) afirmava que o sonho é o caminho mais valioso para encontrar os conteúdos inconscientes e ainda sugere que “o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido, reprimido) ” (p. 145).
Outrossim, para se compreender a relevância de Shakespeare para Freud é preciso recorrer aos dados biográficos do notável psicanalista e às análises de críticos literários renomados no que se refere à influência das artes nas produções intelectuais freudianas. A existência da confinidade das dramaturgias com Freud é evidenciada no perpassar do texto “O Moisés de Michelangelo” pelo próprio Freud (Seger; Sousa, 2013):
[...] Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito (Freud, 1987, p. 253).
Em concordância com o fragmento exposto, Freud põe em posição privilegiada duas áreas artísticas: a literatura e a escultura, assim a primeira, como foco deste artigo, está
fortemente vinculada a William Shakespeare e permite a nós uma idealização da importância das leituras por parte do psicanalista ao decorrer da construção e consolidação de sua teoria.
No livro “O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo”, do professor de literatura estadunidense Harold Bloom (2010), são estudadas obras consideradas imprescindíveis para a formação cultural do homem e explicado que o termo cânone foi, inicialmente, concebido como uma espécie de memória da literatura, armazenando o patrimônio literário. Todavia, inserido dentro da perspectiva atual, a compreensão de cânone por Bloom diz respeito a uma luta pela sobrevivência dos textos, ou seja, a busca pelo seu não esquecimento (Moreira, 2003).
Em sua trajetória, Freud frequentemente recorria às obras de seus autores prediletos, Goethe e Shakespeare, para citar personagens e ilustrar suas ideias. Ele acreditava que grandes escritores utilizavam seus personagens para dar voz aos desejos inconscientes, o que ele via refletido especialmente nas obras desses dois literários (Freitas, 2001). Nessa lógica, através do poder conferido a Shakespeare, ao longo de vários anos, Bloom (2010) sustentou de forma consistente que Freud é, em essência, a prosa de Shakespeare. A compreensão de Freud sobre a psicologia humana é moldada, quer consciente ou inconscientemente, por sua leitura das peças, uma vez que o fundador da psicanálise leu Shakespeare em inglês durante toda a sua vida e o reconheceu como o maior dos escritores.
Não fosse suficiente, o professor Bloom (2010) ainda enfatiza que William Shakespeare havia se transformado em uma “autoridade oculta” nas obras freudianas. Nessa condição, Freud viu nas tragédias e nas comédias shakespearianas uma representação das pulsões humanas, dos complexos edipianos, dos conflitos inconscientes e da natureza dual do ser humano. Portanto, apoiando-se na afirmativa de Bloom e do que foi apresentado até o instante, não se pode negar que Freud leu e se amparou na literatura clássica de Shakespeare para desenvolver, expandir ou ilustrar alguns dos seus conceitos psicanalíticos.
Shakespeare foi considerado um explorador da “segunda consciência”, que se refere ao domínio do inconsciente, principal objeto de estudo da psicanálise, e apresentou os pensamentos multifacetados do ser humano (Bloom, 2010). De forma que Belanger (2007),
autor de “A Enciclopédia dos Pesadelos: A Interpretação dos Seus Sonhos Mais Sombrios”, destaca: “Shakespeare mergulhou fundo e com precisão no inconsciente humano, pois sabia das influências de emoções como o medo e a culpa sobre os sonhos e os pesadelos. ” (p. 239).
A análise da tragédia “Macbeth” é iniciada na investida de compreender o íntimo combate entre o dever e o desejo na mente obscura do protagonista. Para a investigação do interior do personagem, é necessário considerar distintos aspectos, como ambiental e sociopolítico, que culminaram na construção da personalidade do sujeito. Em vista disso, serão analisados dizeres de críticos literários, como Bakhtin, a respeito da obra:
Quando analisamos as tragédias de Shakespeare, também observamos a transformação sucessiva de toda a realidade – que age sobre suas personagens – em contexto semântico dos atos, pensamentos e vivências dessas personagens: ou verificamos diretamente as palavras (palavras das feiticeiras, do fantasma do pai, etc.) ou acontecimentos e circunstâncias, traduzidos para a linguagem do discurso potencial que interpreta (Bakhtin, 2003, p. 404).
Primeiramente “Macbeth” instaura numa atmosfera de horror que persistirá e corresponderá aos confrontos que se proliferam ao longo da dramatização. Logo no estrear da obra, há o surgimento de três mulheres de aparências caracterizadas como “detestáveis” e o ambiente descrito, por intermédio de um rico vocabulário, contribui para uma percepção do estilo gótico, como: a névoa opressiva, a privação de luz, as grandes árvores desfolhadas e o clima frio, produzindo uma sensação de medo e asfixia para o leitor (Polidório, 2000). Além disso, a aparição dessas três figuras misteriosas funciona figurativamente como uma projeção dos desejos inconscientes. Sobre essa suposição, Hegel (2005), com quem concordamos, orientou que as bruxas na peça “Macbeth” são descritas com poderes estranhos que preveem o destino do personagem principal. No entanto, tanto essas previsões quanto às bruxas simbolizam, no sentido psicanalítico, aquilo que foi recalcado, logo elas não passam de desejos inconscientes que foram materializados e impostos externamente sobre o protagonista.
É válido ressaltar que o clima de tensão está presente na peça desde o seu primórdio, posto que são narradas as traições, revoltas e conspirações contra Duncan, o atual rei da Escócia. Ademais, o relato de uma Escócia banhada em sangue devido à guerra civil e às tentativas de invasão reforça a concretização do destino criminoso de Macbeth. É nessa atmosfera de instabilidade e apreensão que as bruxas aparecem na obra, sugerindo a possibilidade de traição por parte de Macbeth, que até então era caracterizado por suas mais honrosas qualidades como guerreiro e súdito leal.
No entanto, desde as previsões das misteriosas bruxas, Macbeth sente-se desconfiado, confuso e até mesmo cético. Sua inquietação, decorrente da premonição dos três vultos há pouco tempo, apoderou-se de sua mente, pois o homem já estava deslumbrado com o futuro promissor que lhe aguardava. Nesse instante, surge um questionamento ousado: No passado, Macbeth já havia desejado a coroa?
A hipótese de que os seres sobrenaturais excitaram uma representação instintual reprimida do inconsciente de Macbeth é examinada e validada pelo filósofo alemão Hegel (2005), citado anteriormente, quem declara que Macbeth, provavelmente, já teria imaginado um futuro onde seria rei, mas esse pensamento não estava consciente e faltaria apenas um estímulo para a pulsão de seu desejo ser ativada e emergisse à consciência. À vista disso, o discernimento de que as bruxas estão simbolicamente representando um espelho cujo conteúdo revela a ambição que havia sido reprimida por Macbeth, foi verificada quando Lady Macbeth, ao persuadir o marido para dar continuidade ao plano de assassinar o rei Duncan, relembra o cônjuge de uma antiga promessa: “[...] E faria saltarem-lhe os miolos, se assim o tivesse jurado fazer, / Como você jurou em relação àquilo. ” (Shakespeare, 2008b, Ato I, Cena VII, p. 30).
Pode-se observar que Lady Macbeth demonstra maior firmeza para cometer o homicídio quando a comparamos com seu esposo, que hesita em distintas ocasiões. Entretanto, para compreender as forças que impedem e simultaneamente facilitam as atitudes de Macbeth em assassinar o rei, é essencial recorrermos ao conceito “Complexo de Édipo”, criado por Freud. A propósito disso, existiriam sentimentos ambivalentes, como rivalidade e ternura, na relação de um filho com seu pai, que é considerado o responsável pela impossibilidade da realização inconsciente do filho de ter a mãe totalmente presente, um desejo de posse. De forma onipotente, o pai, figura idealizada e invejada, torna-se assim um objeto de conspiração daquele que deseja ocupar o seu lugar, o seu próprio filho. Semelhante a isso, Freud acredita que o sentimento de ódio em relação à figura paterna configura um sintoma coletivo das sociedades primitivas, sendo a figura do pai, na família, correspondente às dos sacerdotes e reis na sociedade. Como propõe Freud, os desejos obscuros produzem sentimentos de repulsa e, por consequência, estabelecem um paradoxo com a figura invejada, com a qual não se sabe como agir (Freud, 2019).
Diante do que foi revelado anteriormente, há uma íntima relação entre o rei Duncan e Macbeth, uma relação semelhante à de um pai com seu filho. Assim, o rei reencarna analogicamente a figura do pai de Macbeth, à medida que o protagonista deseja usurpar a coroa.
Mas, inicialmente, ao imaginar as consequências de sua ousadia, teme e reprime a ideia de assassinato. No desenvolver da tragédia, já não sabe ao certo como se comportar.
Posteriormente, Macbeth, em conjunto com sua esposa, Lady Macbeth, articula um outro plano, mas agora com uma nova vítima: Banquo, dado que o novo rei (Macbeth) não poderia sentir-se constantemente ameaçado em perder a sua recém conquistada coroa, uma vez que as feiticeiras que pressagiam o trono para Macbeth também afirmaram que Banquo não seria rei, mas pai de reis, isto é, seus descendentes um dia reinarão. Com isso, é interessante observar a função do personagem Banquo na vida do protagonista em razão do sujeito aparentar ser um protótipo de bússola moral: só de vê-lo Macbeth relembra de suas atrocidades mais abomináveis. Outrossim, mesmo sendo uma testemunha ocular da aparição do trio de criaturas sobrenaturais, e que talvez até desconfie da inocência de Macbeth em relação ao homicídio de Duncan, em momento algum Banquo acusa seu antigo general. Em contrapartida, há um papel bem diferente atribuído a Lady Macbeth, dado que a mulher impulsiona o marido a fazer o que lhe der vontade, sem medir as consequências.
Em vista disso, propomos relacionar Banquo e Lady Macbeth com elementos da segunda tópica freudiana ou teoria estrutural, a qual compreende que a mente humana é constituída por três estruturas que coexistem e interagem entre si para um funcionamento adequado do aparelho psíquico: são elas id, ego e superego. Conforme Freud (2011) o id corresponde à instância inconsciente relacionada às pulsões. O superego diz respeito às ideias familiares e culturais, normas morais e valores. E por fim, o ego é uma estrutura consciente e inconsciente que possui como função a percepção e a busca do equilíbrio entre as exigências do id e do superego. Por consequência, “O Eu representa o que se pode chamar de razão e circunspecção, em oposição ao Id, que contém as paixões” (Freud, 2011, p. 31).
Desse modo, é plausível vincular Banquo à instância psíquica do superego, em virtude da conduta moralmente exemplar do herói, e que mesmo depois de assassinado, o personagem surge de maneira fantasmagórica unicamente para Macbeth, perturbando-o. Lawrence (2008a) nas notas dos versos 36-37 de sua tradução de “Hamlet”, sugere que, apesar da consciência no sentido do senso comum de dever e moralidade (ou melhor, a consciência como uma espécie de mecanismo punitivo), em Macbeth aparenta não existir, ela “aparece na forma de delírio involuntário, verdadeira irrupção do "superego" (por exemplo, com a visão do fantasma de Banquo)" (p. 80-83).
Por último, a morte de Banquo pode ser vista como um crime duplo, representando tanto uma ação concreta quanto um reflexo simbólico do que ocorre no interior de Macbeth. O protagonista não visa apenas eliminar seu companheiro de guerra, mas também aquilo que o impede de cometer atrocidades: seu próprio superego. Hegel (1974) apoia essa interpretação ao afirmar que Macbeth precisa eliminar sua consciência, personificada por Banquo, o que resulta em mais um assassinato na trama. Assim, Macbeth se revela como um indivíduo impulsivo e descontrolado, guiado por seus desejos: um rei tirano e demoníaco, consequência de um desequilíbrio na estrutura de seu aparelho psíquico.
Em contrapartida, Lady Macbeth representaria o id, posto que, inicialmente, mostra-se inatingível por questões morais e éticas da sociedade e apresenta um único propósito: ser e continuar sendo a rainha da Escócia. Todavia, Lady Macbeth é uma personagem extremamente complexa, influente e obstinada, tão profunda e significativa que o fundador da psicanálise (Freud) se empenhou para decifrar sua natureza feminina, que não deve ser precipitadamente reduzida a uma única representação psíquica.
Uma das cenas mais inesquecíveis sucede quando Lady Macbeth invoca os espíritos malignos a fim de que esses seres impeçam que sua frágil natureza feminina, sua bondade e sensibilidade humana, interfiram no alcance de seu maior propósito: encorajar o seu marido a cometer o assassinato do rei da Escócia, para que, consequentemente, o casal ocupasse o posto da realeza. À vista disso, com um desejo de perder sua fragilidade, suas vacilações e seus tremores, Lady Macbeth recorreu às entidades do mal, as quais destroem a sua sexualidade para que realmente consiga agir de modo irredutível, sem quaisquer frêmitos que possam atingir a consciência:
[...] Aos meus domínios. Venham espíritos
Que instilam os pensamentos assassinos, dessexuai-me, Cumulem-me da cabeça aos pés
Com a mais horrível crueldade! Espessem meu sangue, Impeçam o acesso e a passagem à compaixão,
De tal modo que nenhum remorso natural Remova meu propósito de não pactuar Com suas consequências [...] (Shakespeare, 2008b, Ato I, Cena V, p. 24)
Encontramos, assim, no ponto crucial da obra, coordenando a preparação para o homicídio do rei Duncan, Lady Macbeth se encarregando de garantir que todos os cavalheiros que acompanham o rei sucumbam à embriaguez e ao sono, através das drogas inseridas nas bebidas, para que só acordem quando estiverem na cena do crime e cobertos de sangue igualmente como seus próprios punhais, atribuindo a culpa aos outros súditos (Shakespeare, 2021). Com base nisso, Freud (1996) aponta suas considerações sobre essa intrépida mulher. Segundo o neurologista, inicialmente observa-se a ausência de hesitação, conflito interno ou qualquer esforço por parte da personagem em questão, exceto para superar os escrúpulos do seu marido ganancioso, ainda que piedoso. A coprotagonista está disposta a sacrificar até mesmo a sua feminilidade em prol do seu objetivo assassino, sem considerar a função crucial que essa feminilidade desempenhará posteriormente, quando houver a necessidade de preservar a intenção do seu desejo, obtido por meio do crime.
Em grande parte das cenas, o/a leitor/a é levado a crer que Lady Macbeth possui somente coragem e controle em sua alma; não haveria espaço para remorso ou sentimentalismo. Contudo, ao citar, pouco antes do crime contra o rei, a semelhança de Duncan com o seu pai, torna-se visível a aparição do superego, relacionado à moralidade, que até pouco tempo atrás parecia inexistente, posto que Lady Macbeth expressa-se, pela primeira vez, confusa. Com esse lapso de consciência moral, uma angústia tão eloquente é acumulada e, mais tarde, é manifestada mediante um sintoma comportamental: o sonambulismo.
Depois de executado o plano, Macbeth retorna ao encontro de sua companheira sujo de sangue e perplexo consigo mesmo. Em compensação, Lady Macbeth, ao perceber o temor do homem e que ele não forjara a cena do crime para culpabilizar os serviçais do rei, decidiu conduzir a situação com um perfeito autodomínio: “Que fraca determinação! / Dê-me as adagas. [...] Se ainda corre o sangue, / cobrirei com ele as faces dos criados, / para que a culpa deles seja visível” (Shakespeare, 2008b, Ato II, Cena II, p. 37-38). Enquanto Macbeth encara a postura da esposa como sinal de virilidade, esta, por sua vez, admite estar com medo, mas não ignora o erro do marido em deixar que os sentimentos atrapalhassem o objetivo do casal no diálogo seguinte.
Dissemos então que, como sugerido por Freud (1996), houve uma alternância, a partir do instante em que Lady Macbeth concedeu a Macbeth a sua força inabalável, o que significa um aspecto de completude do casal, posto que Shakespeare criou dois personagens que são contrastes e complementos um do outro. Desse modo, é Macbeth quem possui as mãos sujas de
sangue do rei Ducan, entretanto é Lady Macbeth que limpa as suas mãos repetidamente. Enquanto Macbeth sofre de insônia, Lady Macbeth sofre de sonambulismo. Quando é Macbeth quem apresenta alucinações ao crer ver o espírito de Banquo, é Lady Macbeth quem enlouquece, assim, na peça teatral, os personagens que formam o casal estão sempre “compondo um duo que se completa para formar uma unidade” (Gondar, 2017, p. 55).
De acordo com Freud (1996), Ludwig Jekels realizou um estudo sobre William Shakespeare, no qual sugeriu a existência de uma técnica específica do poeta que poderia ser aplicada à obra "Macbeth". Jekels defende a ideia de que Shakespeare frequentemente divide um tipo de personagem em duas frações, as quais, quando analisadas individualmente, não são plenamente compreensíveis, sendo necessário reuni-las para obter uma compreensão integral. Nesse sentido, Macbeth e Lady Macbeth são citados como exemplos dessa técnica empregada pelo inglês. Dito isso, seria equivocado considerar Lady Macbeth como uma personagem independente e tentar compreender sua transformação sem levar em consideração a presença de seu esposo, Macbeth, como complemento. Conforme Jekels, ambos os personagens exploram todas as possibilidades de reação ao crime, representando duas partes distintas de uma mesma entidade psíquica, o que sugere a possibilidade de terem sido inspirados em um único modelo.
A profundidade psicológica da personagem Lady Macbeth é percebida pela insônia que funcionará ao longo da encenação teatral como um elemento simbólico do esmaecimento da saúde psíquica do casal e, simultaneamente, do desmoronamento do reinado de Macbeth. Destarte, ao cravar a adaga repetidas vezes no peito do rei que dormia, Macbeth não matou apenas o rei Duncan, mas também comprometera o sono. Isto é, Macbeth, ao violar o corpo do rei, elimina de sua própria natureza e de sua confidente a serenidade da psique, a qual é substituída por perturbações despertadas pelo crime. Por isso, no ensaio “Da consciência”, o pensador Montaigne (1987) expressa uma observação a respeito do sonambulismo: “É o que também ocorre com quem se compraz no vício, engendra um desprazer que lhe atormenta a consciência, na vigília como no sono “numerosos culpados revelam, durante o sono ou o delírio da febre, crimes de há muito escondidos. ” (II, V, p. 122).
É indiscutível que, após o ato criminoso, a relação do casal é abalada, pois Macbeth agora se dota de uma força e determinação tão expressivas, e, consequentemente, uma autonomia que não precisa mais do apoio da esposa. Esta passa a ser não procurada mais, inclusive sexualmente, ao ponto de ser afastada da história. Assim, a loucura, que tem seu ápice
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nas últimas páginas da obra, semeada na mente de Lady Macbeth, não tem como causa exclusiva a culpabilidade advinda do homicídio, mas também o acúmulo da energia sexual, uma vez que no caso da histeria “a energia sexual era impedida de expandir-se através de sua saída natural e fluía, então, para outros órgãos, ficando restringida ou contida em certos pontos e manifestando-se através de sintomas vários” (Zimerman, 2007, p. 23).
Portanto, Lady Macbeth, que, no começo da peça, pode ser interpretada como uma mulher inabalável, não submissa e passiva, apesar de ser dedicada e fiel ao esposo e incrivelmente destemida, de tal jeito que a personagem confessa que esmagaria um crânio de um bebê sem pestanejar, se tivesse se comprometido com essa causa (Shakespeare, 2008b), é contrariada, mais tarde, por uma outra personalidade qualitativamente diferente. Vemos Lady Macbeth sucumbindo à loucura, e, devido a um grande intervalo sem sua presença na obra, somos surpreendidos ao nos depararmos com uma mulher enferma sofrendo dos males do psiquismo.
Deve-se ressaltar que a histeria (neurose histérica), para Freud (2016), reside em algum fator externo, pois o sujeito é sadio “enquanto sua necessidade amorosa estava sendo satisfeita por um objeto real no mundo exterior, torna-se neurótico quando esse objeto lhe for subtraído” (p. 71). De maneira similar, Lady Macbeth, enquanto tinha a presença de Macbeth e conseguia persuadi-lo, tendo conhecimento dos desejos e medos mais profundos do marido, estava saudável. Mas, após o rompimento dessa relação típica do casal, Lady Macbeth passa a viver em constante perturbação. Esse aspecto, somado ao “retorno do recalcado”, isto é, a culpabilidade e a lembrança vívida do assassinato do rei Duncan e de Banquo, as quais não conseguem ser mais ignoradas, resulta em episódios delirantes.
Esse distanciamento do casal acha-se bastante evidente, depois de Macbeth convidar seus súditos para celebrarem em seu palácio diante de um abundante banquete e proclamarem: “[...] Que cada homem seja o dono de seu tempo/ Até às sete horas. Para que os convidados/ Sejam melhor recebidos, nos manteremos/ Sozinhos até o banquete. / Até lá, que Deus esteja com vocês. ” (Shakespeare, 2008b, Ato III, Cena I, p. 51). Nessa passagem, Macbeth, já coroado, decreta que todos devem se retirar, sem exclusão de ninguém, nem mesmo da sua companheira. Ou seja, depois de ser oficialmente reconhecido como o novo rei da Escócia, Macbeth já não precisava mais de sua parceira.
Paradoxalmente, a relação do casal na primeira cena do livro acentua características de confidencialidade e até de maternidade, logo que Lady Macbeth, em certas passagens, funciona
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de modo similar ao comportamento de uma mãe ensinando algo ao seu filho: “[...] Seu rosto, meu Chefe, é um livro onde os homens/ Podem ler propósitos sinistros. Para enganá-los/ Pareça- se com eles: seja afável no olhar, / Com as mãos, na fala. Assemelha-se à flor inocente, / Sob a qual se oculta a serpente [...]” (Shakespeare, 2008b, Ato I, Cena V, p. 25). Apoiando-se no fragmento citado, vemos que Lady Macbeth aconselha o seu marido como ele deveria se comportar para conseguir conquistar o que deseja: é preciso que Macbeth oculte suas verdadeiras intenções, esconda sua perversidade e os seus desejos mais proibidos.
Ainda é necessário explorar uma das justificativas sugeridas por Freud (1996) para explicar a loucura de Lady Macbeth. O psiquiatra austríaco afirma que a doença da personagem feminina poderia ser compreendida como uma reação à sua infecundidade, levando-a a perceber sua impotência diante das leis da natureza. Ao mesmo tempo confrontando-a com a consciência de que foi por causa de sua própria falha que seu crime foi privado dos melhores resultados.
Mesmo apresentando um possível motivo para a drástica transformação da personagem, de inabalável para sofredora dos males do psiquismo, o questionamento sobre o que realmente provocou a loucura em Lady Macbeth parece inalcançável até mesmo para Freud, como pode ser observado nas diferentes explicações apresentadas pelo psicanalista para o caso.
Nessa lógica, Lady Macbeth sofre por não poder ter filhos, enquanto seu cônjuge exige que haja um herdeiro para assumir o seu trono. De agora em diante é posto em centralidade a esterilidade da rainha como esclarecimento da sua crueldade e como elemento principal da não realização absoluta do desejo do casal Macbeth, dado que sem filhos para constituir uma dinastia, o reinado dos personagens pouco tempo duraria
Contudo, Freud reconhece que a razão da doença de Lady Macbeth não é capaz de ser determinada, apenas apresentada como hipótese. O pioneiro da psicanálise questiona se a desilusão representada pelo fato consumado teria sido o único aspecto responsável pela transformação de uma natureza originalmente dócil e feminina em Lady Macbeth. Ele também se pergunta se há indícios de uma motivação mais profunda que tornaria essa queda compreensível em termos humanos (Freud, 1996).
O que se visualiza na história num primeiro momento é o dilema entre a moral e a ambição em Macbeth, em seguida, a loucura de Lady Macbeth e a destruição de ambos, a morte, dando sentido a classificação da obra como tragédia. Não obstante, Shakespeare descreveu outro conflito, além do explorado no protagonista Macbeth, um conflito interno tido na psique de Lady Macbeth, o qual fornece suporte ao termo “ruína do êxito”, utilizado na obra “Os
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arruinados pelo êxito” de Freud (1974), que ilustra claramente o desenvolvimento da loucura de Lady Macbeth. Segundo Morais Godoy (2015), a “ruína do êxito”: “Trata-se de patologia relativamente comum. Acomete aqueles que se angustiam e se deprimem justamente no momento em que conquistam o que tanto sonharam e pelo que tanto lutaram” (p. 12), logo tal expressão consiste no alcance daquilo que o sujeito tanto almeja, bem como no impasse que se apresenta para o gozo desse desejo.
Se for observada a relação entre a sexualidade e a loucura, nota-se que Shakespeare soube articular muito bem a evolução dos níveis de perturbação referentes à esfera anímica da personagem, implementando na consciência de Lady Macbeth, tendo seu auge no ato V, os sinais e sintomas histéricos, como já citados anteriormente. Então, Lady Macbeth, em seu palácio, passa a receber cuidados de um médico, o qual sinaliza que a rainha necessitava mais de um clérigo do que um médico, uma vez que sua doença era pertencente à alma e só uma confissão poderia curá-la.
De acordo com Freud (2010), é possível constatar uma grande surpresa, e até mesmo confusão, por parte do médico ao descobrir que, em determinados casos, as pessoas adoecem logo após a concretização de um desejo profundamente enraizado e há muito tempo alimentado. Essa situação pode ser interpretada como uma espécie de incapacidade em suportar a própria felicidade, uma vez que não se pode questionar a relação causal entre o sucesso e a doença. Por conseguinte, a essa altura, Lady Macbeth alucinava: vendo suas mãos manchadas de sangue, independente do quanto limpasse, alegava possuir uma mancha de sangue maldita em seu corpo. Ou seja, o sentimento de culpa havia dominado a mulher, levando-a a um final trágico: o suicídio.
Em conclusão, o presente artigo objetivou examinar e compreender a literatura de Shakespeare, explorando seu mérito no campo da psicanálise, em específico nos escritos de Sigmund Freud. Utilizando-se da obra “Macbeth” do dramaturgo inglês, percebemos uma habilidade excepcional em explorar os aspectos mais profundos, complexos e nefastos do psiquismo humano, refletidos nos comportamentos de personagens multifacetados. Assim, as obras shakespearianas, devido às suas singularidades, foram fundamentais para o surgimento
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da teoria psicanalítica freudiana, já que, por meio de suas tragédias e comédias, Shakespeare retratou temas universais, como a cobiça e a sexualidade, que ainda repercutem na contemporaneidade.
Com base na leitura dos estudos freudianos, percebe-se que a literatura, assim como outras formas de arte, foi uma valiosa fonte de inspiração e informações sobre a atuação do anímico. Assim, Freud encaminhou a literatura shakespeariana para uma nova dimensão, ao indagar de modo mais sistematizado as questões, como moralidade e desejo, presentes nas obras. Ao citar Shakespeare, em mais de um momento, em seus feitos, Freud fornece o testemunho da imortalidade e da riqueza das peças do autor que extrapolam sua área de origem e semeiam frutos em outros campos.
Retornando à indagação mencionada na introdução e no título deste artigo: Seria incontestável afirmar que Freud foi um aprendiz genial de Shakespeare? A resposta oscila entre um “sim” e um “não”. Sim, visto que é inquestionável a influência da literatura shakespeariana na psicanálise freudiana. E não, pois não podemos adotar uma visão reducionista e equívoca e proclamar que Shakespeare tenha sido o mestre direto de Freud na psicanálise, logo que tal afirmação simplificaria a complexidade e as imensuráveis contribuições de ambos os autores.
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Os autores declaram não haver nenhum conflito de interesse.
Financiamento próprio.
O presente artigo foi escrito Luana Rodrigues Rocha e Wendel Expedito Batista Martins projetado e concluído no Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Psicologia da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (FADIP). Ambos os autores foram responsáveis pela redação da parte dissertativa do artigo.