Ryan Bruno Antunes da Silva, Bruna de Souza Nicácio Antunes e Luiz César Delfino. Influência midiática e sua incidência no âmbito da jurisdição penal: análise sistemática do processo envolvendo o incêndio na boate Kiss. Revista Ciência Dinâmica, vol. 15, 2024. Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.
Recebido em: 31/03/2023 Aprovado em: 16/07/2024 Publicado em: 23/07/2024
CIÊNCIA DINÂMICA – Revista Científica Eletrônica FACULDADE DINÂMICA DO VALE DO PIRANGA
25ª Edição 2024 | Ano XV - e252405 | ISSN – 2176-6509
DOI: 10.70406/2176-6509.2024.198
2º semestre de 2024
Ryan Bruno Antunes da Silva1, Bruna de Souza Nicácio Antunes 2, Luiz César Delfino3.
¹Discente do Curso de Direito, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, ORCID: https://orcid.org/0009-0000-3420-8916.
2Discente do Curso de Direito, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, ORCID: https://orcid.org/0009-0008-0786-6591.
3Docente do Curso de Direito, Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7456-7929.
*Autor correspondente: bruna.nicacio2014@gmail.com
Resumo
Este artigo examina o impacto da influência midiática no âmbito do Direito Penal, com foco na análise do incêndio que ocorreu na Boate Kiss em 2013, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. A pesquisa investiga a extensão em que a cobertura midiática afetou os diversos estágios do processo jurídico relacionado ao caso, desde as investigações iniciais até as decisões judiciais finais. O estudo destaca a importância de compreender o papel da mídia na formação da opinião pública e na condução dos procedimentos legais. Os objetivos centrais incluem a identificação dos mecanismos pelos quais a mídia molda a percepção do público, a análise das implicações dessa influência na condução dos processos judiciais e a proposta de reflexões so- bre a necessidade de regulamentação da cobertura midiática de eventos criminais. Conclui-se que a influência midiática no âmbito do Direito Penal é significativa e pode ter ramificações importantes para a justiça criminal. Portanto, este estudo destaca a importância de uma aborda- gem crítica e cautelosa em relação à cobertura midiática, bem como a necessidade de considerar estratégias para mitigar possíveis efeitos prejudiciais no processo legal.
Palavras-chave Mídia; Interferência; Jurisdição; Proporcionalidade; Justiça.
Abstract
This article examines the impact of media influence within the scope of Criminal Law, focusing on the analysis of the fire that occurred at Nightclub Kiss in 2013, in the city of Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil. The research investigates the extent to which media coverage af- fected the various stages of the legal process related to the case, from initial investigations to final judicial decisions. The study highlights the importance of understanding the role of the media in shaping public opinion and conducting legal proceedings. The central objectives in- clude identifying the mechanisms through which the media shapes public perception, analyzing the implications of this influence on the conduct of judicial processes and proposing reflections on the need to regulate media coverage of criminal events. It is concluded that media influence within the scope of Criminal Law is significant and can have important ramifications for crim- inal justice. Therefore, this study highlights the importance of a critical and cautious approach to media coverage, as well as the need to consider strategies to mitigate possible harmful effects in the legal process.
Keywords: Media; Interference; Jurisdiction; Proportionality; Justice.
A mídia conquistou sua liberdade nos últimos anos, tendo completa plenitude para noticiar quaisquer casos, haja vista que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso IV, assim dispõe: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Hodiernamente, com tantas formas de veiculação de opinião existentes, as pessoas têm acesso instantâneo e difuso às notícias, dar-se, de tal fato, a necessidade de consciência por parte dos articuladores de notícias, haja vista que a mídia exerce forte influência sobre as pessoas, inclusive sendo responsável por formação de opiniões pois, na efemeridade da rotina, a população acaba não buscando profundidade de conhecimento.
Nesse sentido, as notícias rasas que chegam, muitas vezes, já conseguem fazer com que sejam formadas opiniões acerca destas, sendo assim, é imperioso que haja cuidado na transmissão das notícias e opiniões, pois uma vez na mídia, dificilmente é possível se retratar de um erro transmitido, tendo em vista que o telespectador terá feito seu juízo acerca do fato noticiado.
A relação entre a mídia e o Direito Penal tem sido um tema de crescente interesse e debate acadêmico. Em particular, a cobertura midiática de eventos criminais desempenha um papel significativo na formação da opinião pública e na condução dos processos jurídicos. Este estudo se propõe a analisar a influência midiática no âmbito do Direito Penal, com um foco específico na análise do incêndio na Boate Kiss em 2013, ocorrido em Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil.
O tema central deste estudo é a investigação do impacto da cobertura midiática do incêndio na Boate Kiss em diferentes aspectos do processo jurídico relacionado ao caso. Um problema jurídico de pesquisa fundamental que surge é compreender como a mídia influenciou não apenas a percepção pública dos eventos, mas também os procedimentos legais, incluindo investigações, julgamentos e decisões judiciais.
Os objetivos gerais deste estudo são analisar criticamente a interação entre a mídia e o Direito Penal, identificar os mecanismos pelos quais a mídia molda a percepção do público e avaliar as implicações dessa influência no funcionamento do sistema de justiça criminal.
Para alcançar esses alvos, serão definidos objetivos específicos, incluindo a revisão da literatura existente, a análise da cobertura midiática do caso da Boate Kiss e a investigação dos efeitos dessa cobertura nos procedimentos legais.
A metodologia adotada neste estudo envolverá uma revisão sistemática da literatura relevante e análise de conteúdo da cobertura midiática do caso da Boate Kiss, expondo como a mídia, de forma intensa e pouco humanizada, pode ter influenciado a condução dos procedimentos legais e a percepção pública do sistema de justiça criminal.
No que diz respeito ao marco teórico, este estudo se baseará em teorias da comunicação e do Direito, bem como em discussões sobre ética jornalística e justiça criminal. A análise será fundamentada em conceitos teóricos relevantes para entender a interação entre a mídia e o Direito Penal.
O Direito Penal, assim como as demais ramificações do Direito brasileiro, é baseado à luz da Constituição Federal de 1988 e tem, como principais características, a função de assegurador dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, previstos na Carta Magna.
A função ressocializadora, se deve, através da execução penal, no qual buscar tirar do convívio social os infratores e lhes proporcionar mecanismos para que possam ser reintegrados à sociedade, é o que deveria ser feito, porém isso tem se mostrado mais presente na teoria que na prática.
O Direito Penal é a última área a que se deve recorrer, seu caráter subsidiário confere a esta área a jurisdição de resolver conflitos que não podem ser resolvidos nas demais fragmentações do Direito, pois extrapolam a gravidade e devem ser tratados com maior rigor, muitas das vezes com privações e limitações de direitos aos infratores, para que zelado seja o pleno e pacífico convívio social.
Segundo Roxin (1976, p. 21-22),
“O Direito Penal é subsidiário por natureza, ou seja, apenas lesões aos direitos legais e as infrações aos fins da segurança social podem ser punidas, se for inevitável para uma vida comunitária ordenada. Quando os meios de Direito Civil ou de Direito Público forem suficientes, o Direito Penal deve se retrair. Se for usado onde outros procedimentos mais suaves são suficientes para preservar ou restaurar a ordem jurídica, ele carece da legitimidade da necessidade social”.
O Direito Penal busca punir o comportamento humano lesivo, que abrange desde as intenções até as ações materiais e resultados naturalísticos causados. Quando se trata de intenções, de pensamentos dos infratores, torna-se dificultosa a aplicação da “lei seca”, ou seja, apenas enquadrar o comportamento humano em uma tipificação penal, sendo assim, urge
a necessidade de aplicação de princípios, para se tentar chegar a uma decisão justa do conflito social.
O Cenário pós 2ª guerra mundial fomentou uma ampla discussão global acerca de direitos humanos, haja vista as atrocidades cometidas durante o período e a grande quantidade de vidas perdidas, os países então decidiram fazer uso da diplomacia e assim foi promulgada, em 10 de dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU) a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), figurando como resposta imediata ao terror deixado pelo conflito mundial. Está escrito na declaração supracitada, em seu artigo 11:
- Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
- Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, ao momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Tem-se aí a fundamentação dos princípios da presunção de inocência “In dubio pro reo” e da proporcionalidade, a este sendo conferida a característica de atribuir ao delito pena proporcionalmente correspondente à sua gravidade e aquele caracterizado pela necessidade de considerar o réu inocente no início do andamento processual, somente podendo ser considerado culpado após a dilação probatória, observados os devidos princípios processuais. Dentre eles, destaca-se o princípio da ampla defesa e do contraditório, conferindo às partes processuais paridade de armas, ou seja, igualdade de oportunidades de se manifestar nos autos.
A mídia surgiu na Europa por volta de 1789, vindo a surgir na esfera brasileira apenas em meados de 1808, sendo trazido pela família real portuguesa na sua chegada ao Brasil, criando, o então, jornal “A Gazeta do Rio de Janeiro”, cumprindo a finalidade de noticiar situações do reino. Com a quebra da censura, em 1821, surgiram diversos jornais com diferentes concepções, dentre elas, matérias defendendo a coroa e outras relatando a necessidade da independência (Farias, 2014).
Os veículos midiáticos utilizam de artifícios na propagação das informações, com fulcro em obtenção de engajamento e repercussão, muitas vezes utilizando formas pouco
humanizadas para obtenção da repercussão desejada e, consequentemente, maior geração de lucro para tais.
Dentre os recursos utilizados pela mídia, destaca-se a utilização de linguagem desmoderadamente sensacionalista para atingir a finalidade de chocar o público, causando impacto e emoção. Ao atingir tal finalidade, os consumidores ficam alienados de modo que não percebem os recursos que estão sendo utilizados para obtenção de engajamento, sendo criada uma espécie de barreira entre os leitores, a mensagem e os interlocutores, de modo que os leitores só enxergam e acreditam naquilo que está sendo noticiado, não exercendo o próprio pensamento.
Como mencionado por Moretzsohn (2001), basicamente, os meios de comunicações funcionam tendo como alicerces, empresas que funcionam baseadas em lucros e dependem de sua popularização e credibilidade. Ou seja, visam vender notícias que gerem mais lucros, onde o que não gera impacto perante a sociedade não é importante.
Não obstante a isso, o Estado, a quem cabe o dever de resolver os litígios provenientes do convívio social, notavelmente se observa influenciado pelas deturpações provenientes da influência midiática, embora os juízes sejam dotados de notória capacidade e saber jurídico, se vêem pressionados pela pressão externa.
A mídia tende a gerar efeitos na convicção de juízes togados, ainda mais nos juízes leigos pertencentes ao Tribunal do Júri, segundo o que relata Bastos (1999. p. 115) “a pressão e a influência da mídia tendem a produzir efeitos sobre os juízes togados, muito maiores são esses efeitos sobre o Júri popular, mais sintonizado com a opinião pública, de que deve ser a expressão.”
Consoante a isso, podem ser tomadas decisões descabíveis em desfavor do réu para satisfazer a vontade da população tomada pela ira, após a imposição de culpa, por parte da mídia, aos envolvidos no polo ativo da infração penal; o julgador, então, se vê obrigado a acalmar o fervor, o desejo de “justiça” por parte da sociedade.
O condenado então, para além de ser obrigado a enfrentar uma punição maior do que a que lhe era cabível, terá que lidar, ao sair da pena privativa de liberdade, com a discriminação social ainda maior do que a que recebe os infratores cujos casos não adquirem repercussão na mídia, sendo demasiadamente dificultada qualquer chance de ressocialização do indivíduo.
Para Bastos (1999. p. 116) “A mídia, ao publicar notícias criminais, elege um culpado dentre os envolvidos, atribuindo a culpa a este, mesmo antes do trânsito em julgado, gerando a este um dano irreparável”.
No entanto, faz-se mister observar a necessidade de não deixar a pressão externa interferir nos processos penais, uma vez que o Direito deve ser sempre ancorado na imparcialidade, visando conferir julgamento justo ao caso concreto, com base na materialidade do fato.
O Tribunal do Júri é uma forma de julgamento adotada no Brasil que é aplicada aos crimes dolosos contra a vida, ou seja, atos cometidos com vontade livre e consciente de tirar, prejudicar, colocar em risco a vida de alguém.
De acordo com escritor Marques, “O julgamento dos crimes contra a vida compete apenas ao Tribunal do Júri, onde o autor tem conhecimento do resultado lesivo que pode ser obtido pela sua conduta, esta que existe motivada pela sua vontade de agir e consciência dos fatos” (Marques, 1997. p. 219).
No Brasil, o Tribunal do Júri é composto por um juiz de direito, que preside o julgamento, e 21 jurados, sorteados dentre os alistados, dentre os quais sete deles formam o conselho de sentença em cada sessão de julgamento.
Seguindo este raciocínio, o renomado Lopes Junior escreveu, “A competência dos jurados do Conselho de Sentença, é analisar as provas que estão nos autos e os argumentos trazidos pela defesa e pela acusação nos debates orais, chegar em um convencimento acerca da culpa ou não do réu” (Lopes Junior, 2017, p. 821).
Salientamos que estes 21 jurados podem ser pessoas “leigas” da área jurídica/criminal, sendo exigidas apenas notória idoneidade e idade maior de vinte e um anos.
O Tribunal do Júri representa um mecanismo de exercício da cidadania e da democracia, haja vista que pessoas “comuns” podem participar, representando o interesse de uma coletividade.
Segundo Rangel (2009. p. 52) “O júri é inimigo de todo e qualquer governo ditatorial que, ao assumir o poder, o elimina”. O júri, ao ser utilizado respeitando as normas vigentes, demonstra ser uma importante ferramenta contra regimes autoritários, haja vista que tais governos desejam extingui-lo ao assumirem o poder.
Após encerradas as sessões e dado o veredicto pelos jurados, o juiz presidente apenas profere a sentença com base no julgamento dos jurados, assim declarando o réu inocente ou
culpado, de acordo com a vontade penal, tipificando a conduta cometida com base nas leis penais e impondo a sanção penal cabível ao fato.
Uma vez que o Tribunal do Júri representa a oportunidade do interesse popular ser representado de forma democrática, impreterivelmente faz-se necessária a adoção de rigidez para considerar a necessidade de tal julgamento ser adotado, casos de repercussão midiática e clamor popular, muitas vezes, podem pressionar os juízes a adotar tal método.
Como mencionado por Bonjardim (2002), a mídia possui um grande poder que pode gerar um enorme impacto na opinião pública. Ao gerar matérias de grande repercussão midiática existe uma grande chance de, em determinados casos, afetar efetivamente a imparcialidade do tribunal do júri ou do juiz. Infelizmente não existe no ordenamento jurídico uma forma de proteger os jurados pertencentes ao tribunal do júri da mídia sensacionalista.
Mais uma vez, é importante notabilizar a ânsia de se respeitar os princípios e leis penais; quanto ao Tribunal do Júri, tipifica a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII:
É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a plenitude de defesa;
o sigilo das votações;
a soberania dos veredictos;
a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Sendo assim, com enfoque na alínea d, do artigo e inciso supracitados, o Tribunal do Júri, para estar em conformidade com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, deve ser adotado somente em casos de crimes dolosos contra a vida.
É importante ressaltar a necessidade de uma postura crítica por parte dos indivíduos diante das informações veiculadas pela mídia. Como consumidores de notícias, devemos estar atentos aos possíveis vieses e sensacionalismos presentes na cobertura jornalística, buscando sempre analisar os fatos de forma racional e ponderada.
Além disso, é fundamental que os operadores do Direito, em especial os juízes, estejam conscientes do impacto que a mídia pode exercer sobre o processo judicial. A imparcialidade e a busca pela justiça devem prevalecer em todas as etapas do julgamento, independentemente das pressões externas.
Portanto, a reflexão sobre o papel da mídia na formação da opinião pública e seu impacto no sistema judiciário é essencial para garantir a efetividade do Estado de Direito e o respeito aos direitos fundamentais de todos os envolvidos no processo penal.
Tendo em vista que a adoção do Tribunal do Júri é admitida somente em casos de crimes dolosos contra a vida, surge a necessidade de se entender o que é o dolo, e o que é a culpa. Dolo e culpa são elementos subjetivos do tipo penal, ou seja, dizem respeito a intenção do agente no momento do cometimento do ato, tais elementos são analisados, no conceito analítico de crime, que envolve tipicidade, antijuricidade e culpabilidade, no primeiro substrato.
A tipicidade é a adequação da conduta à norma penal, de forma que se pode fazer o juízo de o fato poder, ou não, ser abrangido pela lei penal.
Zaffaroni, escreveu:
“O delito é, portanto, uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é reprovável (culpável) ” (Zaffaroni, 1996. p.324).
O dolo é formado por dois elementos, um elemento intelectual e um elemento volitivo, assim podendo ser abrangidos: A) Elemento intelectual (ou cognitivo): Se faz presente quando o agente, no momento da ação ou omissão, tem consciência, livre de impedimentos ou pressão, do que está fazendo, salienta-se a necessidade de tal consciência ser no momento da ação ou omissão, afinal o Direito Penal adota, como momento do crime, a teoria da atividade.
Segundo Welzel (2019. p. 272-273)
“Toda a ação consciente é conduzida pela decisão de ação, é dizer, pela consciência do que se quer – o momento intelectual – e pela decisão a respeito de querer realizar
– o momento volitivo. Ambos os momentos, conjuntamente, como fatores configuradores de uma ação típica real formam o dolo."
Paralelamente, cabe citar o erro de tipo, que é quando o agente, comete um fato típico, porém, sem ter consciência de que estava cometendo.
No erro de tipo o indivíduo, desconhecendo um ou vários elementos constitutivos do tipo penal, não sabe que pratica um fato descrito em lei como infração penal, quando na verdade o faz (Masson, Cleber. 2019).
Para ilustrar:
Indivíduo, em uma área de mata, enquanto caçava, realiza disparo de arma de fogo em determinada direção uma vez que viu movimentos e acreditava ser o javali que estava caçando, quando na verdade, era seu amigo, que vem a óbito em decorrência do disparo.
Na referida situação fictícia, o agente não tinha consciência de que estava atirando em seu amigo, portanto o fato não pode ser considerado típico e o agente não deve ser punido por homicídio.
Já a culpa, é também um elemento da tipicidade e abrange três elementos: Imprudência, negligência e imperícia.
A imprudência consiste na violação das regras de condutada, o agente, de modo de fácil entendimento, toma uma atitude que não deveria, trata-se então de um comportamento positivo, sempre uma ação do agente.
De modo contrário, a negligência envolve um comportamento omissivo, abrange o “deixar de fazer”, sendo assim, o agente deixa de observar precauções que deveria adotar para que o fato não se materializasse.
Quanto à imperícia, esta abrange a falta de aptidão, de técnica, habilidade, trata-se também de um comportamento positivo; o agente exerce uma atitude, sobre a qual não tinha o devido conhecimento técnico.
Não é de difícil entendimento tais proposições, no entanto, se torna um pouco dificultoso, quando se trata da diferença entre culpa consciente e dolo eventual, pois trata-se de uma “linha tênue”, conforme ditos populares, quando dois fatos são de difícil separação.
Na culpa consciente (ou culpa com previsão), o agente tem consciência do que está fazendo e do resultado que pode ocorrer por decorrência do seu comportamento, no entanto, acredita veemente que o resultado não lhe ocorrerá.
Um exemplo amplamente difundido na doutrina é de um agente que, durante uma caçada, confiando na sua perícia com armas de fogo, vendo a proximidade de um animal e seu companheiro de caça, acredita que consegue acertar o animal, no entanto, feito o disparo, atinge e mata seu companheiro.
No dolo eventual, o agente tem consciência do seu comportamento e do resultado que pode vir a acontecer, no entanto, trata com indiferença a possibilidade do resultado, não se importando caso este venha a se materializar.
Para Capez (2011), a culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele ocorra (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou prosseguir”). Na culpa consciente, embora prevendo o que possa vir a acontecer, o agente repudia essa possibilidade (“se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar alguém, mas estou certo de que isso, embora possível, não ocorrerá”). O traço distintivo entre ambos, portanto, é que no dolo
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eventual o agente diz: “não importa”, enquanto na culpa consciente supõe: “é possível, mas não vai acontecer de forma alguma”.
Torna-se dificultosa a diferença entre dolo eventual e culpa consciente pois, em ambos, o agente consegue prever o resultado, no entanto, deve-se buscar entender se, no momento da ação ou omissão, o agente não queria o resultado naturalístico e se mostrava confiante de que tal não ocorreria (culpa consciente) ou se o agente tratava com indiferença a possibilidade de ocorrência do resultado.
Um caso que obteve grande repercussão midiática nacional e internacional, foi o caso do Incêndio na Boate Kiss, é o que descreve Santos (2013. p. 2) “O incêndio na boate Kiss, no centro de Santa Maria, ocorreu às 2h30 de 27 de janeiro de 2013, quando, de acordo com o resultado das investigações, a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da noite, teria usado efeitos pirotécnicos durante a apresentação. O fogo teria iniciado na espuma do isolamento acústico, no teto da casa noturna.
Devido ao grande número de vítimas, o fato teve repercussão internacional. Logo após a tragédia, a Promotoria de Justiça pediu a prisão preventiva dos donos da boate e dos integrantes da banda. O processo está em andamento na Justiça do Rio Grande do Sul e responsabiliza também autoridades municipais, estaduais e policiais bombeiros”.
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, na casa noturna, de nome “Boate Kiss”, localizada na cidade Santa Maria – RS, um incêndio, proveniente de utilização de artefatos pirotécnicos, vitimou fatalmente 242 jovens presentes, e deixou mais de 600 feridos. Uma sucessão de erros por parte dos gestores do local, fez com que o incêndio não pudesse ter sido evitado/controlado, uma série de ações e omissões, resultou no elevado número de vítimas fatais e feridos.
Destaca-se, dentre esses erros: Show pirotécnico em ambiente fechado, espuma inflamável e composta por material tóxico como revestimento, falha em extintores de incêndio, superlotação, falhas na estrutura, exemplo: havia apenas uma porta de saída; dentre outros fatores.
Observa-se, então, por parte dos gestores: Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Lodeiro Hoffman, e dos membros da banda que tocava na noite do ocorrido: Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, um comportamento imprudente/negligente, ao
passo que exerceram condutas não recomendadas para a segurança de um ambiente como o tal, que comportava um evento de tal tamanho e também foram omissos ao não observar e impor todas as condições de segurança necessárias ao ambiente.
A DENÚNCIA:
A Promotoria de Justiça de Santa Maria, representando o Ministério Público, instaurou denúncia em desfavor de:
ELISSANDRO CALLEGARO SPOHR, RG 1083427664, alcunha “Kiko”,
brasileiro, solteiro, comerciante, instrução superior incompleta, nascido em 06/02/1983, natural de Santa Maria, filho de Eliseu Jorge Spohr e Marlene Terezinha Callegaro, endereço na Rua Visconde de Pelotas, nº 1623, ap. 301, Bairro Centro/Rosário, em Santa Maria, recolhido à Penitenciária Estadual de Santa Maria, preso preventivamente.
MAURO LONDERO HOFFMANN, RG 236903251 e/ou 7005170357, brasileiro,
solteiro, empresário, nascido em 10/09/1965, natural de Santa Maria, filho de Inaude Expedito Paim Hoffmann e Jacyr Maria Londero Hoffmann, residente na Rua José Barrachini, nº 267, casa 7-A, Bairro Cerrito, em Santa Maria, recolhido à Penitenciária Estadual de Santa Maria, preso preventivamente.
MARCELO DE JESUS DOS SANTOS, RG 1083107464, brasileiro, solteiro, músico, instrução fundamental, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL MINISTÉRIO PÚBLICO PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE SANTA MARIA
nascido em 06/06/1980, natural de Santa Maria, filho de Darci Onofre dos Santos e Sueli de Jesus dos Santos, residente na Rua 15, casa 02, Vila São Serafim, Bairro Juscelino Kubitschek, em Santa Maria, recolhido à Penitenciária Estadual de Santa Maria, preso preventivamente.
LUCIANO AUGUSTO BONILHA LEÃO, RG 8054063212, brasileiro, solteiro, produtor musical e auxiliar de palco, instrução fundamental, nascido em 01/10/1977, natural de Porto Alegre, RS, filho de Maria Odete Bonilha Leão, residente na Rua Capão da Canoa, nº 601, ap. 201, em Santa Maria, recolhido à Penitenciária Estadual de Santa Maria, preso preventivamente.
A promotoria alegou homicídios consumados e tentados em desfavor dos indivíduos acima citados, declarando que foram responsáveis pelas mortes dos 242 (duzentos e quarenta e dois) indivíduos presentes ao evento, mortos por asfixia por inalação de gases tóxicos, as tentativas foram requeridas devido ao fato de alguns dos jovens conseguirem sair do local, por alegada circunstância alheia à vontade dos agentes, tendo assim recebido tratamento médico eficaz e consequente manutenção da vida.
Além disso, o Ministério Público pleiteou a aplicação de dolo eventual à conduta dos agentes, alegando indiferença pela segurança das vítimas, sendo prevista a possibilidade de ocorrência do resultado morte aos presentes.
Ademais, pediu que fossem aplicadas as causas qualificadoras meio cruel, haja vista o emprego de fogo e asfixia, e motivo torpe, configurado pela ganância dos sócios, que buscaram economizar, invés de priorizar a segurança do ambiente.
ANÁLISE DOS PEDIDOS PLEITEADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indubitavelmente, houve homicídios consumados no ocorrido, as 242 fatalidades ocorridas, possibilitam a configuração de homicídios, em concurso formal, ou seja, através de uma ação ou omissão, ocorreram múltiplos homicídios.
No entanto, caso fosse corretamente reconhecida a forma culposa, não haveria que se falar em homicídios na modalidade tentada., pois tomando por base o conceito de tentativa tipificado no artigo 14, inciso II do Código Penal de 1940, se diz o crime: “Tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”.
De tal forma, apenas é cabível a tipificação da tentativa, se a conduta é cometida com vontade livre e consciente de realizar a ação ou omissão (dolo).
Segundo Rogério Greco,
“Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo. O art.14, inciso II, do CP conceitua que ocorre a tentativa quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Assim, verifica-se que, em regra, os crimes culposos não admitem tentativa. Entretanto, é possível na culpa imprópria”. (Rogério Greco. p. 195-210).
Portanto, só poderia ser admitido o pedido pelas tentativas caso o crime fosse considerado doloso. Surge então a problemática evidenciada anteriormente, da linha tênue entre culpa consciente x dolo eventual.
Uma vez que o caso do incêndio na Boate Kiss, se mostra duvidosa e forçada a condenação dos réus com base na admissão do dolo eventual, pois ficaram evidenciados nos atos dos gestores da casa noturna e dos integrantes da banda comportamentos imprudentes e negligentes, até mesmo podendo-se aferir que estes tinham consciência do que poderia ocorrer devido suas ações e omissões.
No entanto, é claramente impossível aferir que os agentes tinham indiferença para com o que pudesse ocorrer com os frequentadores do local, que não se importavam com o resultado
morte que poderia ocorrer, afinal, a boate era rentável a eles que, inclusive, frequentavam o local, de modo que inexiste provas suficientes para caracterização do dolo eventual.
Tendo em vista o caráter muito mais gravoso desta espécie de dolo, se comparado à culpa, é imperioso que não seja banalizado a ponto de ser aplicado em casos em que não há nenhuma correlação entre os atos cometidos e a indiferença para o resultado material.
Mostra-se completamente possível ser imputada a eles a culpa, nesse caso, de forma consciente, pois agiram de forma imprudente e omissa, sabendo o que poderia ocorrer, porém acreditando que nunca aconteceria.
Além disso, caso fosse decretado o correto, que seria o homicídio culposo, seriam imediatamente afastadas as qualificadoras de meio cruel e motivo torpe, haja vista a dispensa da intenção de matar.
Ademais, o julgamento não se daria pelo rito do Tribunal do Júri e sim pelo procedimento comum, onde os réus seriam julgados por Juiz togado (Juiz com formação jurídica obrigatória, ocupante do cargo em caráter vitalício), o que, em tese, diminuiria consideravelmente as chances de os réus serem condenados estritamente com base no clamor público.
Não obstante, a pena que poderia ser cominada aos réus seria significativamente menor, nos termos do art. 121, §3º:
Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965) Pena – detenção, de um a três anos. No entanto, evidentemente motivado pela pressão dos veículos midiáticos e pelo clamor social e até mesmo como uma forma de se afastar da responsabilidade de julgamento, o TJRS acatou o pedido do Ministério Público e acatou o pedido de dolo eventual no caso, decretando como competente para o julgamento do crime, o Tribunal do Júri.
Ao revisitar a tragédia ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, é essencial confrontar a decisão que classificou o evento como doloso, em vez de culposo. Tal decisão reflete não apenas um erro na interpretação legal, mas também uma profunda falha em reconhecer a complexidade dos eventos e as nuances da responsabilidade jurídica.
A classificação do incêndio como doloso, implicando uma intenção deliberada de causar danos, desconsidera a série de negligências e falhas que levaram à tragédia. Não houve, por parte dos responsáveis pela boate, uma intenção direta de causar um incêndio ou ferir deliberadamente os frequentadores. Ao contrário, a tragédia foi resultado de uma série de descuidos, como a superlotação do local, a ausência de saídas de emergência adequadas e a falta de protocolos de segurança eficazes.
Considerando o evento como doloso, a justiça falha em reconhecer a responsabilidade dos envolvidos de forma adequada. A negligência e o descaso com a segurança dos frequentadores são condutas que, embora não se enquadrem estritamente no conceito de dolo, certamente merecem ser punidas de acordo com a gravidade das consequências.
A decisão de levar os responsáveis pela Boate Kiss ao Tribunal do Júri com base na classificação dolosa do crime é, portanto, questionável, pois em vez de buscar uma punição que corresponda efetivamente à natureza das falhas cometidas, essa abordagem parece mais focada em atender a uma demanda por justiça punitiva, influenciada pela comoção pública e pela pressão midiática.
Após dez anos do ocorrido, a situação é a seguinte: Os réus se encontram em liberdade, aguardando um novo julgamento, após anulação, por parte da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), haja vista que acolheu parte dos recursos de defesa dos réus, da decisão proferida no Tribunal do Júri em 2021, devido a inobservância de alguns requisitos para a utilização de tal órgão julgador, ou seja, procedimentos formais que devem ser respeitados durante o julgamento e não são referentes ao mérito do processo propriamente dito, tais como:
A escolha dos jurados ter sido feita depois de três sorteios, quando o rito estipula apenas um.
O juiz Orlando Faccini Neto ter conversado em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou dos advogados de defesa;
O magistrado ter questionado os jurados sobre questões ausentes do processo;
O silêncio dos réus, uma garantia constitucional, ter sido citado como argumento aos jurados pelo assistente de acusação;
O uso de uma maquete 3D da Boate Kiss, anexada aos autos sem prazo suficiente para que as defesas a analisassem.
Conforme relatado anteriormente, a influência midiática acontece de forma incisiva no Direito Penal, casos que se tornam emblemáticos e de repercussão social, tendem a ser julgados com maior rigidez, sendo desrespeitados preceitos e princípios básicos do Direito Penal.
No caso em pauta, não é difícil perceber que não houve dolo eventual por parte dos agentes, haja vista que inexistiu conduta orientada com finalidade de causar os lamentáveis resultados.
Diante do exposto, não seria possível a imputação objetiva, pois a inobservância do dever de cuidado acarretaria, no máximo, uma responsabilização a título de culpa.
Sendo assim, no caso em questão, foram defasados, dentre outros, o princípio da presunção de inocência, haja vista que na falta de provas suficientes, a decisão deve ser favorável ao réu, o princípio da proporcionalidade.
Com a caracterização do dolo eventual, os agentes receberam, além de pena mais gravosa, um julgamento de cunho mais rígido, sendo este o Tribunal do Júri, e o princípio da imparcialidade, que regula o Direito de forma geral, o qual frisa a obrigatoriedade de decisão imparcial, livre de vícios.
Mostra-se necessário o estabelecimento de parâmetros legais e jurisprudenciais concisos, para que deixe de ocorrer a banalização do dolo eventual e sua consequente aplicação em casos que não lhe seriam, em condições normais, uma aplicação cabível, dessa forma a culpa e o dolo eventual, devem ser utilizados dentro de suas delimitações legais, para que seja preservado os direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico, mais precisamente pela Constituição Federal de 1988.
Apesar do caráter trágico do incêndio na boate Kiss, o direito deve ser uma ferramenta de aplicação da justiça, sendo assim, ninguém deve cumprir pena mais gravosa do que a merecida, não devendo ser admitida qualquer possibilidade de influência externa, social, ética ou racial, para que assim seja manutenida, preservada, a segurança jurídica do ordenamento jurídico brasileiro.
Nitidamente, observa-se uma influência exacerbada da mídia até mesmo já no Tribunal do Júri, pois, requisitos formais e obrigatórios para esse tipo de julgamento foram desrespeitados devido à ansiedade para dar uma resposta ao público que clama pela condenação dos indivíduos, até mesmo requisitos que podem, com certeza, influir para o prejuízo da defesa dos réus, por exemplo, o fato de o Ministério Público ter se utilizado de um sistema de consultas integradas para impugnar jurados sorteados.
O Ministério Público impugnou devido ao fato de, em algum momento, terem visitado amigos e familiares em ambiente prisional, fazendo um juízo de valor pautado em preconceito, provavelmente adequando o fato desses indivíduos terem visitado parentes e amigos na prisão, à possibilidade de que eles se mostrassem mais favoráveis aos réus do que pessoas que nunca tivessem tido nenhum envolvimento com indivíduos em situação carcerária.
Ademais, tem-se também o fato de o juiz ter conversado, a portas fechadas, com o corpo de jurados, o que claramente afeta a imparcialidade do juiz que, além de ser subjetiva, deve ser estética, ou seja, além de ser imparcial.
O juiz deve mostrar sua imparcialidade, de modo que qualquer ato que tenha mera potencialidade de acarretar uma imparcialidade do juiz, ainda que não o faça, não deve ser tolerado.
Outra erroneidade no julgamento se deu pelo fato de o Ministério Público ter "inovado" nos debates, ou seja, mencionou, no momento da audiência, fato que não havia constado na denúncia, tampouco nas provas anexadas aos autos, dificultando a defesa dos réus, dentre outras irregularidades.
Cita-se a declaração proferida pelo Juiz Orlando Faccini Neto, em entrevista ao G1:
“O que eu posso assegurar é que atuei com todo vigor e com toda energia justamente para que isso não ocorresse. Jamais me preocupei se o resultado final do júri aludiria à condenação ou à absolvição de um ou mais dos réus, uma vez que são quatro acusados. O meu objetivo era que houvesse uma resposta, era que houvesse uma resposta. E se as instâncias superiores do judiciário entenderem que nessa minha atuação houve alguma contribuição para que essa demora se intensificasse, eu realmente só tenho que pedir desculpas. ”
Por esta declaração, é notória a preocupação do juiz em dar uma resposta à sociedade, no entanto, a ânsia e a pressa para tal consecução, ainda que não tenha havido vontade prejudicar os réus, é notada com as irregularidades cometidas no julgamento, o que acarretou a anulação deste.
Evidentemente, a resposta que a população deseja obter não deve ocorrer a custas de banalização das leis e normas do Direito Processual Penal, a avidez para resolução do caso apenas culminou em ainda mais morosidade.
Por fim, sintetiza-se com o presente artigo, a importância da conservação dos princípios norteadores do Direito Penal e garantidores dos direitos fundamentais defendidos
nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e pela própria Carta Magna do país, a Constituição Federal de 1988, que traz um rol amplo e não taxativo de direitos fundamentais que devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Destaca-se, dentre estes direitos, na esfera criminal, a importância da presunção da inocência e da proporcionalidade da sanção penal ao crime cometido.
Ao longo deste, foi feita uma apresentação, não com o intuito de exaurir os temas, da influência midiática e social no Direito Penal, mais especificamente no Tribunal do Júri, seja forçando sua aplicação, seja orientando a sanção penal imposta por tal órgão julgador, evidenciando uma problemática nociva ao caráter ressocializador do Direito Penal, haja vista que são dificultadas aos agentes envolvidos em crimes de grande repercussão, as possibilidades de serem reintegrados ao convívio social de modo digno, pois sofrem intensa estigmatização.
Ademais, fora apresentada a tênue diferença entre culpa consciente e dolo eventual, conceitos da Teoria do Crime de difícil distinção, tanto na teoria quanto na prática, devido ao fato de ser admitido a utilização do Tribunal do Júri somente nos crimes dolosos contra a vida, no presente caso se mostrou evidente a dificuldade de tal distinção, sendo pleiteada pelo Ministério Público a consideração de dolo eventual, duvidosamente e evidentemente influenciada, a decisão do TJRS foi por acatar o pedido, convocando Tribunal do Júri para julgamento do fato.
Além disso, foram citados e contextualizados os pedidos feitos pelo Ministério Público na denúncia, que se mostraram fora da realidade e, claramente motivados, por uma necessidade de “fazer justiça” e satisfazer o pleito social.
De tal modo, enfoca-se na grande interferência da mídia no Direito Penal, de forma que é deixada de lado a tecnicidade das ciências penais, para que se satisfaça o clamor da sociedade, no entanto, é necessário que essa interferência seja afastada, pois a aplicação de sanções penais mais rígidas que as merecidas pelos autores de crimes, viola completamente a dignidade da pessoa humana.
Urge então a necessidade de uma tipificação mais precisa ou de uma súmula vinculante para unificação das jurisprudências que divergem em casos parecidos, quando sobre um deles ocorre maior repercussão, quanto à adesão do Tribunal do Júri, abrangendo a necessidade de se haver uma diferenciação precisa, ainda que dificultosa, dos conceitos de dolo eventual e culpa consciente
Ante o elucidado, mostra-se imprescindível uma formação específica para os disseminadores de informação, na qual aprenderiam o essencial do poder judiciário brasileiro e os limites da liberdade de informação, visando uma maior imparcialidade da mídia nesses casos e o não descumprimento dos princípios fundamentais regidos pela Constituição.
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Declaração de Interesse
Os autores declaram não haver nenhum conflito de interesse
Financiamento
Financiamento próprio.
Colaboração entre autores
O presente artigo foi escrito por Ryan Bruno Antunes da Silva, Bruna de Souza Nicácio Antunes e Luiz César Delfino, projetado e concluído no Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (FADIP). Todos os autores cuidaram da parte dissertativa do artigo.